Antes do Baile Verde, de Lygia Fagundes Telles

antes-do-baile-verde-de-lygia-fagundes-telles-2Quando li Ciranda de Pedra (clique aqui para ler a resenha da obra), o primeiro romance de Lygia Fagundes Telles, entendi que era ali que a autora brasileira manifestava o primor literário que bem lhe cabia. É lá que existe a plenitude de Lygia em forma de romance.

No entanto, é no livro Antes do Baile Verde que a escritora nos escancara a excelência que também sabe conduzir quando se fala em conto.

Antes do Baile Verde foi publicado originalmente em 1970 e contém 18 contos, escritos entre 1949 e 1969.


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As histórias narradas entre as páginas do livro são as mais diversas, mas todas sabem impressionar o leitor com cada situação criada.

“Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude, tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer duas mil plásticas e não resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha juventude mas naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode mesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede à noite, como o sol, a lua, eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem…” (Apenas um Saxofone)

O que dizer quando um homem leva a ex-namorada para dentro de um jazigo em um cemitério abandonado? O que falar quando alguém entra em um quarto de um bordel afirmando ter sido ali que seu filho morreu?

Como ler uma história onde uma pessoa fica tão fascinada por um quadro que mergulha e vive a cena retratada? Como se comportar em uma noite de Carnaval quando duas moças finalizam uma fantasia enquanto um homem agoniza no quarto ao lado?

O que fazer quando um menino vai ao cinema com a mãe e observa uma cena de adultério? O que sentir quando uma mulher tenta descobrir se o bebê no colo de uma mãe, sentada ao seu lado, está vivo ou morto?

“E tem coisa à beça para ver tanto por dentro como por fora, ainda mais por fora, uma porrada de coisas que comprei no mundo inteiro, coisas que nem sabia que tinha e que só vejo agora, justo agora que está escuro. É que fomos escurecendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada, pretensiosa. E sobretudo rica, exorbitando de riqueza, abri um saco de ouro para o decorador se esbaldar nele. E se esbaldou mesmo, o viado.” (Apenas um Saxofone)

Antes do Baile Verde é uma festa para o imaginário do leitor. Um baile discreto, mas, ao mesmo tempo, cheio de cores, sons e imagens. Um baile poético na melhor narrativa de Lygia Fagundes Telles.

Os contos da obra são extremamente requintados. Os climas montados em cada história são intimistas e trazem à tona experiências humanas. O livro reúne contos contemporâneos muito realistas.

A beleza da narrativa de Lygia é percebida pelo infinito fio que constrói as histórias com base nos mais diversos detalhes. A autora é muito detalhista ao contar as situações de cada conto. As palavras são muito bem escolhidas, as sequências são muito bem constituídas. Antes do Baile Verde é uma escultura muito bem esculpida.

“A borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se colaram palpitantes. Desenrolou a tromba. E inclinando corpo para a frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor.” (Um Chá Bem Forte e Três Xícaras)

Dos 18 contos, é claro que alguns me chamaram mais atenção. Entre eles, posso destacar “Verde Lagarto Amarelo”, “A Chave”, “A Janela”, “O Jardim Selvagem”, “Natal na Barca”, “A Ceia”, “As Pérolas” e “O Menino”.

“Ela ainda insistiu. Teria mesmo insistido? Os saltos do sapato ecoaram no silêncio como pancadas algodoadas, fugindo rápidas. Estendeu a mão até a cama e puxou a coberta. Tudo escuro, tudo quieto. O perfume foi-se suavizando e ficou o perfume de um jardim de estátuas, estátuas alvíssimas que dormiam sem pupilas, nenhuma cor conseguiria fazer com que abrissem as pálpebras.” (A Chave)

Além dos enredos, os personagens de Lygia são construídos com a bem sucedida proposta de aproximação ao leitor. As histórias vivem viradas e revelações e os finais de grande parte dos contos concretizam a aptidão da escritora para finais em aberto, deixando a curiosidade já instalada no leitor desde o começo da narrativa.

Se às vezes nada se explica, é também difícil de explicar a imaginação apurada de Lygia Fagundes Telles.

“Era verdade, ela preferia ficar, ela ainda o amava. Um amor meio esgarçado, sem alegria. Mas ainda amor. Roberto não passava de uma nebulosa imprecisa e que só seus olhos assinalaram a distância. No entanto, dentro de algumas horas, na aparente candura de uma varanda… Os acontecimentos se precipitando com uma rapidez de loucura, força de pedra que dormiu milênios e de repente estoura na avalancha. E estava em suas mãos impedir. Crispou-as dentro do bolso do roupão.” (As Pérolas)

Aos 93 anos, membro da Academia Brasileira de Letras desde 1985, ganhadora de diversos prêmios, indicada ao Nobel de Literatura 2016, Lygia Fagundes Telles é uma das maiores autoras da literatura brasileira.

Se Antes do Baile Verde é o início da consagração de Lygia, não só como contista, mas como grande escritora que é, depois disso é só primazia. Lygia escreve como ela mesma narra em um de seus contos:

“Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto.” (Verde Lagarto Amarelo)

Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles

Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles 2Aos quase 93 anos de vida, a escritora Lygia Fagundes Telles foi indicada ao Prêmio Nobel de Literatura 2016. E nada melhor do que, para a primeira leitura da autora brasileira, o primeiro romance escrito por ela: Ciranda de Pedra.

Publicado em 1954, Ciranda de Pedra já foi utilizado como base para duas telenovelas homônimas da Rede Globo, em 1981 e em 2008.


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A obra é dividida em duas partes. Na primeira, o leitor acompanha a vida de Virgínia quando ainda é menina, criança. Caçula de três irmãs, Virgínia sofre o baque da separação dos pais. Mas só ela que vai morar com a mãe, Laura, e o padrasto, Daniel, enquanto as irmãs, Bruna e Otávia, ficam com o pai, Natércio.

Na primeira parte do livro, a visão de Virgínia assiste à crise que desestrutura a família burguesa altamente polida. A menina, confusa, tenta se adaptar a uma vida acompanhada da loucura da mãe, do rancor do pai, do desespero do padrasto, da hostilidade das irmãs e do amor platônico por um garoto.

Pela visão ingênua de Virgínia, conhecemos seus sonhos, suas imaginações, seus pensamentos, seus desejos, seus medos e, principalmente, seus sentimentos.

“- (…) Virgínia, você fez agora um gesto que fazia quando era pequenina assim… Quando qualquer pessoa se despedia e ia embora, você ficava olhando para o lado por onde a pessoa tinha desaparecido, abria os braços e repetia, ah!… cabou!… cabou!… Então dava uma certa tristeza porque a gente ficava com a impressão de que a pessoa não voltaria nunca mais, que estava mesmo tudo acabado, acabou-se! Pois é, acabou-se.”

A catástrofe familiar de Ciranda de Pedra aumenta e o leitor chega à segunda parte da obra. Depois de vários anos, interna num colégio de freiras, Virgínia volta ao convívio da família já jovem adulta. Com outros olhos, a garota vê as transformações de todos e dela mesma.

Virgínia vê que as aparências enganam e que ninguém é realmente o que parece ser.

“Com um gesto lento, Virgínia amarfanhou entre os dedos uma folha seca que o vento atirara para dentro do carro. Sentiu as mãos geladas embora a tarde estivesse quente. “É a volta”, justificou para si mesma. “Depois de tanto tempo, por maior que seja o desligamento, a gente sempre se impressiona um pouco”, concedeu. Mas sentia-se vagamente decepcionada. A verdade é que se julgara muito mais invulnerável àquela mistura de emoções que lhe davam obscuramente uma sensação de insegurança.”

Quando volta à família, certas coisas permanecem iguais, mas outras não. Com o tempo, todos podem mudar. Ninguém sabe tudo de ninguém e ninguém sabe nada de ninguém.

O que na primeira parte da obra era focado na família e no sofrimento de Virgínia, a segunda parte é possuída pelo amor. O drama da família vira a delação do romance. A roda das relações gira. Há mudanças, caminhos se cruzam. Os amores chegam até certo ponto inesperado ao leitor. É a normalidade nem tão normal assim. São as aparências…

Nessa gira, porém, a vida de Virgínia carrega marcas eternas que a obrigam a conviver da melhor, ou pior, maneira possível.

“- (…) Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher as rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas.”

Um dos sonhos da menina Virgínia nunca mudou. Ela sempre quis entrar na roda. Solitária, sempre desejou isso. Ela mal sabia que quando entrasse, nem tudo seria como imaginava ser.

O marco inicial de Lygia Fagundes Telles é caracterizado pela sensibilidade da autora para com os sentimentos dos personagens. Em Ciranda de Pedra, Lygia explora as características psicológicas dos personagens de ótima maneira.

Ciranda de Pedra é muito bem descrito já no texto da contracapa: “Nessa ciranda de sentimentos, cada um guarda seus segredos, anseios e frustrações (…)”. Uma roda de sensações, uma gira de sentimentos… É a ciranda da vida.

“(…) O tempo incumbira-se de suavizar-lhe os traços e agora ali estava refletida no espelho a delicada imagem de uma moça sorrindo de si mesma na tentativa de reconstituir a antiga expressão da meninice. Onde se escondera o rostinho anguloso, agressivo?

– Libertei-me.”