Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto

Morte e Vida Severina e outros poemas, de João Cabral de Melo Neto 2Venho tentando não me ater aos romances. É óbvio que é difícil. Nesses meses literários, é fácil perceber. A ficção domina. Mas ela domina de uma forma muito natural. É o que mais existe, é o que mais leio e é o que mais continuará tendo. Mas venho tentando variar.

Não que eu não leia não-ficção. Muito pelo contrário. Leio de tudo um pouco. Já li muito. Adoro livros de crônicas, biografias, livros-reportagem e outros. E sinto cada vez mais a necessidade de me aproximar dos contos – portanto, aguardem!

Nesse entrelaçado de ficções, venho tentando trazer variedades. É mais difícil do que parece, mas já trouxe mini-perfis de artistas da MPB e recentemente a graça das crônicas de Antonio Prata. Hoje, resolvi trazer um campo do qual eu nunca me apeguei. É o universo da poesia.


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O primeiro livro de poemas que trago para cá é de João Cabral de Melo Neto. E quero já deixar aqui bem claro: esse livro não é somente o Morte e Vida Severina. Vou explicar:

Morte e Vida Severina e outros poemas, a obra que vos falo, é um volume da editora Alfaguara que compila quatro livros de João Cabral de Melo Neto. Ou seja, são quatro livros em uma obra. Portanto, saiba que as impressões que lhes darei da obra é sobre o volume todo. Não falarei somente de Morte e Vida Severina, por mais que mereça, sim, uma atenção maior.

“E se somos Severinos 
iguais em tudo na vida, 
morremos de morte igual, 
mesma morte severina: 
que é a morte de que se morre 
de velhice antes dos trinta, 
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia”

Como dito, o volume compila quatro obras. São elas, respectivamente: O Rio; Paisagens com Figuras; Morte e Vida Severina; e Uma Faca Só Lâmina.

Antes, porém, falarei rapidamente do poeta e sua obra. João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife, em 1920. Diplomata, morou em diversos países, principalmente em cidades da Espanha. Em 1942, publicou seu primeiro livro, Pedra do Sono. Foi em 1950 que publicou um marco de sua poesia, O Cão Sem Plumas. Mas foi com O Rio e Morte e Vida Severina que veio a consagração oficial, que perdurou além de sua morte, em 1999.

Em O Cão Sem Plumas, de 1950, João Cabral de Melo Neto trouxe como tema o rio Capibaribe e seu povo. Em O Rio, um dos livros deste volume Morte e Vida Severina e outros poemas, o poeta retoma o tema com outra visão. Narrativo, de forma quase documental, O Rio traz a fala do próprio rio, que descreve seu percurso, entre engenhos, usinas e campos de cana-de-açúcar, e também os trabalhadores que por nele passam. É o rio que descreve o que “vê”.

“Terras que eu abandono 
porque é de rio estar passando. 
Vou com passo de rio, 
que é de barco navegando. 
Deixando para trás 
as fazendas que vão ficando. 
Vendo-as, enquanto vou, 
parece que estão desfilando. 
Vou andando lado a lado 
de gente que vai retirando; 
vou levando comigo 
os rios que vou encontrando.”

Paisagens com Figuras, segundo livro na ordem do volume, é de 1955. Nele, o poeta mistura figuras e paisagens de Pernambuco e da Espanha. Todas são, na verdade, como lembranças verídicas.

Em Uma Faca Só Lâmina, última parte da compilação de poemas, João Cabral de Melo Neto estabelece um tema um tanto complicado e, por vezes, espesso de tão maciço. É a composição poética.

Por fim, dando nome ao volume, Morte e Vida Severina, obra mais social e popular de João Cabral de Melo Neto, publicada em 1956, completa a trilogia sobre o rio Capibaribe. E, mais uma vez, o poeta traz o tema sob outro olhar. Em Morte e Vida Severina, as vozes são dos retirantes que fogem da seca pelo curso do Capibaribe até o Recife.

“Desde que estou retirando 
só a morte vejo ativa, 
só a morte deparei 
e às vezes até festiva;
só a morte tem encontrado 
quem pensava encontrar vida, 
e o pouco que não foi morte 
foi de vida severina”

O trajeto do rio é reconstituído em uma sucessão de personagens, mas sempre com a presença de um retirante em específico, Severino.

Em Morte e Vida Severina, conhecemos aspectos fundamentais sobre esses retirantes que fogem da seca do sertão e do agreste. E, como se trata de João Cabral de Melo Neto, temos aí um olhar especial: as imagens ocultas que o poeta vê e nos revela.

“— Seu José, mestre carpina, 
e quando ponte não há? 
quando os vazios da fome 
não se tem com que cruzar? 
quando esses rios sem água 
são grandes braços de mar? 

— Severino, retirante, 
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo, 
não é como qualquer poço: 
mas sei que para cruzá-la 
vale bem qualquer esforço.”

Assim como o rio Capibaribe, que vai em direção ao mar, percorremos a obra do poeta vagarosamente.

Nesse volume de livros da década de 1950, João Cabral de Melo Neto nos mostra um olhar sobre a natureza e os homens como ele próprio enxerga. De grande voz poética, de aparências originais, são temáticas corrompidas por um perfil muito próprio e pessoal.

“Gente de olho perdido 
olhando-me sempre passar 
como se eu fosse trem 
ou carro de viajar. 
É gente que assim me olha 
desde o sertão do Jacarará; 
gente que sempre me olha 
como se, de tanto me olhar, 
eu pudesse o milagre 
de, num dia ainda por chegar, 
levar todos comigo, 
retirantes para o mar.”

Sob impressões subjetivas, conhecemos um gerador de imagens que sabe pensar, ver e dizer o que quer.

João Cabral de Melo Neto é um poeta visual que nos dá percepções como se fossem panos de fundo para princípios morais. O que valem são as lições que se aprendem nessa experiência sensorial que é sua poesia.

“E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.”