O Cavaleiro Inexistente, de Italo Calvino

O Cavaleiro Inexistente, de Italo Calvino 2A história de O Cavaleiro Inexistente é exatamente a que você está pensando. É a história de um cavaleiro que não existe.

Esqueça questões filosóficas. Embora tenha uma armadura e tenha pensamentos mais humanos que muitos seres existentes, ele realmente não existe, no termo físico da coisa. Dentro da armadura sem corpo, só o vazio. Mas um vazio cheio de complexidades.

Italo Calvino, o autor do livro, é um dos mais importantes escritores italianos do século XX. Em O Cavaleiro Inexistente, Calvino entra no globo heróico da cavalaria medieval para nos apresentar uma obra conhecida como se fosse “um romance de cavalaria às avessas”. E é isso mesmo.


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O Cavaleiro Inexistente conta a história de Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez. Putz… Difícil, né? Mas o nome completo do cavaleiro não importa. E não é porque ele não existe, não. É porque é um nome muito difícil mesmo. Vamos chamá-lo, então, de Agilulfo.

“Agilulfo pareceu hesitar um momento, depois com mão firme e lenta ergueu a viseira. Vazio o elmo. Na armadura branca com penacho iridescente não havia ninguém.
– Ora, ora! Cada uma que se vê! – disse Carlos Magno. – E como é que está servindo, se não existe?
– Com força de vontade – respondeu Agilulfo – e fé em nossa santa causa.”

Agilulfo é um cavaleiro que, por defender a virgindade de uma donzela, tornou-se paladino de Carlos Magno. Apesar de não existir, é um modelo de soldado. Segue a posição com seriedade, mas é antipático a todos. Sua mania pensativa de controlar tudo e achar desfalques no serviço alheio não atrai a amizade de outros paladinos, que dizem que “já que não pega sarna, não acha nada melhor do que coçar a sarna dos outros”.

O fato é que o mais perfeito soldado de Carlos Magno, de fato, não existe. Parece irônico, não?

Em certo ponto – mesmo que demore um pouco a surgir –, o heroísmo do nosso cavaleiro inexistente é posto em dúvida. Enquanto tenta provar e comprovar seu feito heróico, o leitor acompanha as aventuras e desventuras de sua jornada.

Quem narra toda essa história – sim, temos um narrador – é a Irmã Teodora, uma freira confinada em um convento. Daí você pergunta: oi? Pois é. A história de Agilulfo é narrada por uma freira que está cumprindo penitência. E a penitência de Irmã Teodora é exatamente a de narrar tal história.

“O capítulo que começamos e ainda não sabemos que história vamos contar é como a encruzilhada que superamos ao sair do convento e não sabemos se nos vai colocar diante de um dragão, um exército bárbaro, uma ilha encantada, um novo amor.”

A freira narradora da história do cavaleiro inexistente admite não saber nada de guerra e, por isso, escreve com base em relatos encontrados, velhos documentos, deduções feitas por raros testemunhos e conversas ouvidas.

Nesse enredo de bom final, a galeria de personagens é muito bem levantada. De Rambaldo a Bradamante, de Sofrônia a Torrismundo, de Priscila a Gurdulu. Sem esquecer, é claro, de Agilulfo, o reflexivo cavaleiro que não existe.

Humorado, O Cavaleiro Inexistente é, sim, “um romance de cavalaria às avessas”. E põe avessas nisso.

“Assim, tanto sobre o amor como sobre a guerra, direi de boa vontade aquilo que consigo imaginar: a arte de escrever histórias consiste em saber extrair daquele nada que se entendeu da vida todo o resto; mas, concluída a página, retoma-se a vida, e nos damos conta de que aquilo que sabíamos é realmente nada.”

Til, de José de Alencar

Til, de José de Alencar 2Poderia ser O Guarani, com o amor de Peri e Ceci. Poderia ser Senhora ou Lucíola. Poderia ser Iracema. Mas não é. É TilNão é o primeiro livro que li do José de Alencar. Mas é o primeiro livro desse autor que trago para cá. É Til.

Til é um dos romances regionalistas de José de Alencar. Publicado em 1872, o livro faz parte de uma fase onde o autor, natural do Ceará, usa e abusa do regionalismo na construção de suas histórias.


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Formado em Direito, José de Alencar seguia carreira política. Apesar de ter vivido somente 48 anos e ter tido a literatura como uma atividade paralela à política, ele escreveu 19 romances, seis peças de teatro, crônicas, ensaios e mais.

Foi em 1857, com O Guarani, que Alencar tornou-se um escritor reconhecido pela crítica e pelo público. Mas era na política que vivia intensamente.

Em meio a um grande projeto político, onde tinha o objetivo de escrever sobre a formação dos brasileiros, nasceu Til.

“Essa ingênua confissão, fê-la a menina com um gesto encantador, rasgando os grandes olhos puros e brandos, como se abrisse os seios d’alma ao pensamento suspeitoso do companheiro. Foi o olhar deste que abaixou-se encadeado e cego com a reverberação; e o rubor queimou-lhe as faces, enquanto a menina banhava-se em um sorriso de canduras.”

Com atenta observação nas tradições e nos costumes da época, a obra também traz à tona a linguagem do brasileiro. O vocabulário de Alencar em Til é difícil. Uma visita ao glossário é sempre bem-vinda.

O enredo acontece em uma fazenda no interior de São Paulo. Seguindo um dos caminhos típicos do romantismo, José de Alencar trama a história entre amor e aventura.

“O amor, porém, é contagioso, com especialidade na solidão, onde a alma tem necessidade de uma companheira, e quando de todo não a encontra, divide-se ela própria para ser duas: uma, esperança; outra, saudade.”

A protagonista do livro é Berta, típica romântica de coração grande que se sacrifica para ajudar ao próximo. Personagem central, a menina mulher exerce grande influência sobre as outras personagens do livro. Entre caridade e sensualidade, Berta é descrita como “pequena, esbelta, ligeira, buliçosa”.

É adorada por todos. Os meninos suspiram de amor por ela. Berta foi rejeitada quando nasceu. Por isso, foi criada por uma viúva chamada Nhá Tudinha.

A garota e Miguel, filho de sangue da mãe que criou Berta, são amigos dos filhos de Dona Ermelinda e Luís Galvão, Afonso e Linda.

Afonso e Miguel contraem uma paixão por Berta; e Linda por Miguel. Mas Berta trata todos como irmãos.

Luís Galvão também cria um sobrinho órfão, Brás, que tem problemas mentais. Brás vai à escola, mas não consegue aprender nada. Compadecida, Berta resolve ensiná-lo o alfabeto, relacionando as letras às pessoas que Brás conhece. Brás, por sua vez, entra em alegria ao ver o sinal do til (~). É assim que Berta vira Til.

A história enrola-se em outros muitos acontecimentos. Há tantos outros personagens. Sempre acompanhando a vida adolescente dos amigos e a vida rural da época, cheia de natureza brasileira, Til transborda amizade, paixão, inocência, confiança, amor e relação.

“E assim é tudo nela; de contraste em contraste, mudando a cada instante, sua existência tem a constância da volubilidade. Na vaga flutuação dessa alma, como no seio da onda, se desenha o mundo que a cerca; a sombra apaga a luz; uma forma devanece a outra; ela é a imagem de tudo, menos de si própria.”

Til é regionalismo e é romantismo puro. Os personagens são idealizados e, no enredo, há a típica luta entre o bem e o mal. Tem tristeza e alegria. Tem flashback. Tem meiguice e diálogos um tanto bregas. No entanto, também tem pitadas de mistério.

O começo é arrastado, saiba disso. Por vezes, é necessário persistência. Mas é Til.

Em Til, José de Alencar dá ponto alto nas descrições e nas comparações. É um livro de imagens, luzes, sons e cores. Uma história de sensações.

“Nesse monossílabo proferido por Berta, com sua voz sempre doce e melodiosa, percebia-se uma vibração íntima que destoava no meio daquela harmonia. Era como o brandimento da corda que estalava, ou como o áspero triscar do diamante no vidro.”

6 obras de Gabriel García Márquez

6 obras de Gabriel García MárquezNão é segredo que Gabriel García Márquez foi um dos mais importantes escritores do século XX. Nascido em Aracataca, na Colômbia, em março de 1927, o escritor, jornalista e político teve suas obras traduzidas para o mundo inteiro. São mais de 40 milhões de livros vendidos em 36 idiomas. Em 1982, ganhou o Nobel de Literatura.

Em 2009, García Márquez declarou aposentadoria. Não pretendia mais escrever livros. Em 2012, foi diagnosticado com uma demência que, embora estivesse em bom estado físico, havia perdido a memória. García Márquez realmente não voltaria a escrever.

Lutando contra um câncer nos pulmões, gânglios e fígado – o escritor já havia superado um câncer linfático em 1999 -, Gabriel García Márquez morreu, na Cidade do México, em 17 de abril de 2014, aos 87 anos, vítima de uma pneumonia.

O escritor colombiano foi e continua sendo um dos autores mais admirados pelo público leitor. Selecionei seis livros imprescindíveis de Gabriel García Márquez. Quantos você já leu? Qual deles entrará na sua lista de leituras?

Relato de um Náufrago

A história é de um marinheiro sobrevivente de um naufrágio no mar do Caribe. Quando surge a tormenta, vai tudo ao mar, até as mercadorias contrabandeadas. O ano é 1955, época da ditadura militar na Colômbia. A história verdadeira, o governo não revelou. O marinheiro foi proibido de falar com alguém além de sua própria família, os médicos e os jornalistas do governo. Mas um jornalista da oposição conseguiu…

Notícia de um Sequestro

Publicado em 1996, é um livro de não ficção. A obra trata de vários acontecimentos que rodeiam o Cartel de Medelín, comandado por Pablo Escobar, na Colômbia. É uma série de sequestros inter-relacionados, todos do começo da década de 1990. Apesar da mistura entre realidade e ficção, o livro foi escrito a partir dos depoimentos de personagens envolvidos no drama. Uma perspectiva decorrente do tráfico de drogas.

Amor nos Tempos do Cólera

É o amor que mexe com a minha cabeça e me deixa assim. Ou com a cabeça de García Márquez. Ou com a cabeça do leitor de García Márquez. Pelo menos mexe com a cabeça dos personagens Florentino e Firmina. Apaixonados quando jovens, voltam a se relacionar 50 anos mais tarde, depois do fim do casamento de Firmina. É um romance de realismo fantástico passado no século XIX na América Latina. Um triângulo amoroso e um sentimento percorrido ao longo da vida.

Memória de Minhas Putas Tristes

Escrito em 2004, narra a história de um velho que, ao completar 90 anos, decide presentear a si mesmo com uma louca noite de amor com uma adolescente virgem. No entanto, ao observá-la dormindo, não tem coragem de acordá-la. Assim ele se apaixona por uma garota adormecida. Relembrando os momentos amargos de sua vida pessoal e profissional, o velho solitário reflete a respeito da vida com as desventuras que o levaram até ali. É o último livro de García Márquez.

Crônica de uma Morte Anunciada

Outra obra de ar jornalístico, o livro reconstrói a história do assassinato de Santiago Nasar pelos irmãos Vicario. Um enredo de verdades e desconfianças, de acusações e romance, de culpa e injustiça. Uma história de mistério e vingança. Uma história contada como crônica, sem apegos, com o objetivo de anunciar uma morte já anunciada.

Cem Anos de Solidão

Grande trunfo de García Márquez, considerada uma das obras mais importantes da literatura latino-americana, é uma das mais lidas e traduzidas de todo o mundo. Acontece em um forte realismo mágico, nas seis gerações de aventureiros do povoado de Macondo. Cultural popular e indígena, com doses cavalares de crítica social, humor e surrealismo, é uma grande metáfora. Sem mais.

Em maio, vou resenhar uma dessas obras do grande García Márquez. Qual será?


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Nu, de Botas, de Antonio Prata

Nu, de Botas, de Antonio Prata 2Nu, de Botas é uma graça. Que graça é Nu, de Botas. Uma graça cheia de graça. Compilação de graças que nos faz ter graça. E de tão graça, nos faz ver a graça e achar a graça e sentir a graça. Que graça é Nu, de Botas.


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Nu, de Botas é um livro de crônicas; textos que revisitam as memórias mais marcantes da infância de Antonio Prata, o autor da obra.

Prata, cronista brasileiro, um dos maiores da atualidade, narra, em Nu, de Botas, parte dos seus primeiros anos de vida com passagens muito originais. Não esquecendo, é claro, de um elemento essencial, comum em suas crônicas e no livro que vos falo: a graça.

“A clandestinidade era um canto no lavabo, entre a pia e a parede. A porta, quando aberta, projetava uma sombra entre o vão, deixando-o ainda mais protegido. Já havia recorrido àquele refúgio em vários esconde-escondes e, vez por outra, fugindo do banho: não seria agora, no sufoco, que ele me deixaria na mão.”

A graça de Nu, de Botas é feita de muitas graças: a graça cômica, a graça fantasiosa, a graça misteriosa, a graça lírica, a graça carente, a graça suave, a graça nostálgica, enfim, graças de enchê-las de graças.

“Durante meus primeiros anos de vida, a função das cuecas foi um enigma. Pra que usar uma sunga de algodão por baixo da calça, a apertar-nos o pinto, o saco e a bunda, se a todas essas partes do corpo era tão agradável o toque macio do moletom? O mistério arrastou-se até o dia em que meu pai, ouvindo-me reclamar da etiqueta de uma bermuda, a me pinicar as costas, sugeriu que eu vestisse uma cueca. Das trevas fez-se a luz. Então era isso, claro: elas existiam para nos proteger das etiquetas!”

As crônicas de Nu, de Botas perfilam uma figura sentimental de um garoto criado em São Paulo, nascido nos anos 1970. As memórias da infância do autor são retratadas como vivências reais, mas nem tudo é realidade!

Os textos de Prata, compilados no livro em questão, são filtrados pela ficção. Embora, ao lê-lo, saibamos que muito que sai dali é a mais pura verdade sentimental. Toda brincadeira tem um fundo de verdade…

“Bumbum, por exemplo, estava liberado por toda parte. Bunda era permitido na casa do meu pai e da minha mãe, mas não na escola ou na casa da minha avó. Existia uma terceira palavra curtinha e de aparência inofensiva, que não deveria ser pronunciada jamais, nem na casa do meu pai, como ficou claro da primeira vez que a ouvi.”

A capacidade de observação de Prata é alta e faz de sua obra o mérito. Algumas crônicas ganham mais atenção – mas isso vai de gosto.

As histórias de Nu, de Botas vão dar mais graça ao seu dia. Como Duvivier diz na contracapa da edição, o livro de Prata nos faz rir, chorar, rir do ridículo de chorar, chorar do ridículo de ficar rindo e, no final, querer rir mais um pouco.

Nu, de Botas tem um humor afetivo que nos faz colocar um sorriso no rosto e pensar: que graça!

“Na maior parte do tempo, porém, conseguia trajar-me de acordo com meus princípios: botas, sempre; cuecas, jamais.”

Aos 7 e aos 40, de João Anzanello Carrascoza

Aos 7 e aos 40, de João Anzanello Carrascoza 2Tocante. Talvez seja essa a melhor palavra capaz de definir Aos 7 e aos 40.

Não sei se eu teria encontrado esse livro nos dedilhados das estantes das livrarias. Não sei se eu teria esbarrado com esse livro nas buscas bruscas e discretas da aleatória curiosidade. Não sei se eu teria sido apresentado a esse livro nos cotidianos dos atos da vida. Talvez eu nunca tivesse tido a grande oportunidade que é ler Aos 7 e aos 40. Talvez, se não pela ocasião que foi, eu nunca tivesse conhecido Aos 7 e aos 40. E isso seria uma grande pena…


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“De volta pra casa, o ônibus estava silencioso, os meninos maiores sem nada pra comemorar. No embalo do motor, de repente, não sei porquê, me lembrei forte, muito forte, da prima Teresa. Ela, na minha memória, com o seu sorriso. Então, livre da sua ausência, eu fiquei pensando que, às vezes, é preciso mesmo olhar pra trás se queremos ir em frente.”

Aos 7 e aos 40 é o primeiro romance do grande contista João Anzanello Carrascoza. Brasileiro, do interior paulista, Carrascoza, entre diversos livros de contos e também histórias infantojuvenis, tem dois romances publicados. Aos 7 e aos 40 é de 2013.

A obra apresenta recortes do cotidiano de uma vida. Vida retratada em dois momentos distintos: aos sete e aos quarenta anos.

“Enquanto se adaptavam, esse à companhia daquele, vieram outros assuntos, gerais ou só dos dois, e, pela comunhão que urdiam com as palavras, foram se deixando ser quem de fato eram, pai e filho de volta um para o outro, esquecidos de que um dia não estariam mais ali, de que não seriam, no minuto seguinte, os mesmos de agora.”

Por meio desses recortes, que acontecem na infância e na maturidade, conhecemos o protagonista dessa vida e o cotidiano que nela ronda. Em acontecimentos marcantes, observamos amizades, relações, aventuras, dores, alegrias, dificuldades e emoções.

“O silêncio sangrava, entre eles, feito uma ferida; o menino, entregue, cabeceava de sono no colo da mãe. Quando se aproximavam da farmácia, uma longa explosão de fogos de artifício rasgou a quietude da noite. O homem voltou a pensar naquele vizinho, a devolver a bola que ele e o irmão jogavam, sem querer, do outro lado. Sabia, era uma certeza visceral, que o seu time havia ganho o campeonato, – e sabia, também, mirando pelo retrovisor o vulto único no banco de trás, que uma perda, lá adiante, o esperava.”

O livro conta a história desse personagem nunca nomeado em dois momentos diferentes. Mas o livro também conta duas histórias simultaneamente. Isso porque alguns capítulos podem ser lidos em qualquer sequência – embora não seja algo que eu recomende.

O que é interessante de observar é a personalidade do menino, o caráter que se forma na infância e se faz notar na maturidade.

“A Teresa estava lá, calada, à sombra da mangueira. Tão calada que eu pensei, mesmo sem sermos íntimos, Ela tá triste. Eu nem sabia ler a tristeza nas pessoas. Eu ainda errava no meu olhar. Mas aí eu me acerquei, no máximo de meu quieto, como se dizendo, Oi, eu tô aqui. Ela mirava o chão, sincera com as formigas. Ergueu a cabeça. Sorriu. Na minha impaciência, eu ia correr com as palavras, oferecendo um assunto pra nós. Mas, estranhamente, senti uma calmaria, quase de sono. Olhei bem pra ela. Pra ver tudo, nos detalhes. A cor dos olhos, o nariz arrebitado, a boca bonita, os dentes brancos clarinhos, tudo o que, pra mim, era o jeito dela. E, foi aí, de repente, que eu perdi toda a pressa do mundo.”

A estrutura do livro, no entanto, é uma das grandes sacadas de Carrascoza. Os capítulos são intercalados: os ímpares narram a infância e os pares, a vida adulta. De um jeito muito inovador, o autor constrói, assim, a oposição que já faz presença no texto. Uma estratégia que não para por aí.

Os títulos dos capítulos também reforçam certa oposição: “Depressa” e “Devagar”; “Nunca Mais” e “Para Sempre”; “Silêncio” e “Som”; “Fim” e “Recomeço”.

O projeto gráfico do livro também segue essa linha genial. Totalmente impresso sobre papel verde, o livro apresenta as narrativas da infância na parte superior da página e as da maturidade na parte inferior.

“Saímos. Antes de chegar na Kombi, olhei de rabo de olho e vi, surpreso, que meu pai estava chorando. Na hora eu achei que seria melhor não olhar, até procurei fingir, pra ele se controlar. Eu senti que ele se envergonharia se eu percebesse. Andamos depressa, a grande mão dele no meu ombro, num toque leve, um carinho resignado. Como quem não quer nada, fiz que estava atento ao movimento das ruas, mas vi a dor cobrindo o rosto dele quando o sol cintilou em seus olhos.”

Que livro, que talento, que prosa, que ideia. Aos 7 e aos 40 é breve e intenso, profundo e delicado. Pequeno, é um grande livro.

Sabe aqueles textos que lemos e ficamos admirados quando o autor parece escolher as palavras certas para dizer as coisas certas?

Aos 7 e aos 40 presenteia lições de vida e observações oportunas. O grande intento de Carrascoza, contudo, é evidenciar as pequenas coisas da vida, os pequenos atos do cotidiano. A vida, na verdade, é feita de pequenas coisas. O cotidiano é repleto de pequenos atos.

“Tanto que, ao ver o filho à porta do apartamento, seu coração começou a bater macio, como se enganasse o perigo que o impedia de ser afogar naquela felicidade. O mundo lhe parecia simples, os reencontros possíveis, nem se dava conta do milagre que o universo produzia para acontecer, entre um homem e seu filho, uns atos banais.”

Tocante. Sensível e tocante. Em trato com certos assuntos, o livro tem esse poder: o poder de tocar o leitor.

Em experiência própria, como é feliz ler um livro capaz de nos relacionar com a ficção, observar a realidade e pensar na verdade dos acontecimentos – dos grandes aos banais.

Entre tantas coisas que Carrascoza diz, ele afirma que as grandes coisas da vida acontecem nos vãos das pequenas coisas. Aos 7 e aos 40 é um livro bonito de se ver e lindo de se ler.

“Depois, enquanto o filho estava no banheiro, foi pegar o pequeno pacote, um presente, guardado há semanas, o game que o menino sonhava, e esse, antes de abri-lo, quando à sala retornaram, só pelo tamanho e formato, adivinhou o que era, e disse, Obrigado, obrigado, pai! e o disse com tanta verdade, que parecia até um exagero para o instante, ou para o tamanho da surpresa, mas, sem que soubesse, com essa ênfase, estava dando também ao pai uma dádiva, estava se dando a ele, e era só o que o homem precisava e tudo o que o menino podia dar.”