Sagrada Família, de Zuenir Ventura

O escritor Zuenir Ventura, mineiro de Além Paraíba, é conhecido por seu experiente trabalho como jornalista. Colunista do jornal O Globo, o vencedor do Prêmio Jabuti em 1995 ocupa a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras desde 2014.

Além de registrar a história de muitos personagens da vida real em suas décadas de jornalismo, Zuenir, hoje com 85 anos, é autor de livros que misturam ficção e realidade. Em Sagrada Família, de 2002, Zuenir Ventura mistura ficção e memória em um livro que nasceu a partir de um projeto em que o autor procurava escrever sobre suas lembranças não como autobiografia, mas algo com um elemento nostálgico.


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É assim que o escritor compôs a obra, que conta uma história ficcional, mas que acontece com um pano de fundo verídico. Isto é, ao expor o cotidiano de uma pequena cidade, com personagens muito característicos, Zuenir reconstitui um período muito importante da história, que vai da 2ª Guerra Mundial até os avanços modernos da sociedade, passando pelo cenário político do Estado Novo de Vargas.

A história de Sagrada Família acontece nos anos 1940 na cidade fictícia de Florida, na região serrana do Rio de Janeiro. O narrador, agora médico, rememora lembranças de sua infância e adolescência caracterizando detalhadamente momentos e situações marcantes de sua vida e da vida de parte da sua família.

“No verão, Florida podia ser uma das melhores cidades de veraneio do país, mas às vezes a pior, quando a chuva caída inclemente por trinta dias sem parar, e o turista permanecia trancado no hotel ou na pensão, para não falar dos mais sacrificados, os jovens moradores que queriam namorar e não podiam mais sair de casa. Tudo bem que havia os cinemas e os clubes, mas havia também todas as donas santinhas exercendo rigorosa fiscalização. Com chuva, sem praça, sem Recanto das flores, sem avenida, acabava a liberdade.”

O narrador do livro é Manuéu, que menino orgulhava-se da grafia original de seu nome até descobrir ser um erro de cartório. Pelos seus olhos, o leitor é apresentado a diversos personagens da cidade de Florida, todos muito caricatos.

O enredo dá mais atenção a três personagens: a tia Nonoca, jovem viúva de luto eterno, e suas duas filhas, Cotinha e Leninha. É na casa desta tia que o garoto passava as suas férias. E é, portanto, neste cenário, que o leitor acompanha a perda da inocência do menino que observa os acontecimentos que o rodeiam.

Além da tia e das duas primas, outros personagens famosos aparecem. Tem o bad boy galã e agressivo, a dona da casa de prostituição e a figura fofoqueira que dá plantão na vizinhança.

Entre casos, o tempo avança e as descobertas daquela pequena comunidade vão se revelando e criando a falsa moralidade escondida em todas as partes.

“Geniosas ambas, Cotinha, no entanto, guardava o que Leninha, extrovertida, punha para fora. Uma certa circunspeção e um constante mau humor da mais velha contrastavam com a alegria e o riso franco da mais nova. Cotinha tinha uma sensualidade contida, reprimida. Leninha era divertida, provocante. Uma era dramática, a outra, cômica. Vivendo no auge da Política de Boa Vizinhança do presidente Roosevelt, elas pareciam saídas de um reclame das revistas ilustradas ou de um filme da Metro, aos quais assistiam todo fim de semana. Eram, como suas colegas, completamente americanizadas. Achavam que, para ser “modernas”, precisavam usar batom Colgate, porque era “importado da América”, perfumar-se com os produtos de toucador de Elizabeth Arden e se vestir com os modelos de Hollywood cujos moldes elas copiavam de publicações especializadas.”

O pano de fundo acaba pesando, de modo positivo, para a história, que entrelaça costumes da época e certos posicionamentos, tomando, por vezes, temas polêmicos.

Para o final da obra, o narrador, que já havia se mudado da cidade serrana do Rio, regressa à Florida depois de muitos anos. Partindo de algumas evidências, ele descobre certas revelações capazes de chocar até o leitor.

O título é uma ironia. Afinal, de sagrada, a família que protagoniza o enredo do livro, acaba por não ter nada.

Caracterizando muito bem o cenário e as personagens caricatas de pequenas cidades, a obra é uma visão bem humorada da hipocrisia da sociedade em sua época; época essa de pudor e malícia ao mesmo tempo. Sagrada Família é um registro, meio ficção, meio autobiografia, que revela a moralidade disfarçada entre as portas de uma vizinhança. Pelo olho mágico, sagradas famílias.

“Mais do que um ato de gozo, ela acabara de viver uma dolorosa cerimônia de sacrifício. Estranhamente, se sentia contente. Aquelas condições desfavoráveis, adversas, quase humilhantes, reforçavam a certeza do quanto o amava. Amava-o incondicionalmente, sobre todas as coisas.”

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