Caixa de Pássaros, de Josh Malerman

Caixa de Pássaros, de Josh Malerman 2Já li muitos romances policiais. Já li histórias cercadas de mistérios. Já li obras de suspense daquelas que adoram prender a atenção. Um thriller como Caixa de Pássaros, nunca havia lido.

Vou começar pela história. História que começa quatro anos depois de tudo ter começado.


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Há quatro anos, Malorie vive com seus dois filhos pequenos em uma casa abandonada próxima ao rio. Há tempos, Malorie quer fugir para um local seguro. Mas o caminho até lá é perigoso. Malorie precisa remar 32 quilômetros. Precisa prestar muita atenção. Precisa usar a inteligência. Malorie precisa dos filhos. Precisa dos ouvidos treinados das crianças. Tudo porque, no mundo em que vive, nos tempos atuais, só se pode sair de casa vendado.

Há alguma coisa lá fora. Há quatro anos, há algo lá fora que não deve ser visto. Basta uma olhadela e a pessoa é levada a cometer atos de violência mortal. O que é? De onde vem? Ninguém sabe.

Há quatro anos, Malorie treina as crianças – Garoto e Menina. Quatro anos que parecem uma vida inteira. As crianças foram treinadas para ouvir. Essa é a educação dada a elas. Se elas não podem ver, elas precisam ouvir. E Malorie precisa delas para ouvir. Ouvir o caminho. Mas quão longe uma pessoa consegue ouvir?

Malorie protegeu os filhos não do que poderiam vê-los, mas do que eles poderiam ver. Uma viagem, uma fuga. Deixar a casa para sempre e ir até um lugar onde há segurança, para ela e para as crianças.

Encontrar a coragem para ir embora não é fácil. Quando surge uma neblina, Malorie decide fazer o que esperou durante quatro anos. E as vendas são a maior proteção deles.

“Os dois pegam as vendas e amarram o tecido preto com firmeza sobre os olhos. Conhecem bem aquele gesto. São especialistas nisso, se é que é possível ser especialista em alguma coisa aos quatro anos. Aquilo parte o coração de Malorie. São apenas crianças e deveriam estar curiosas. Deveriam perguntar à mãe por que estão indo naquele dia para o rio, um rio onde nunca estiveram.”

O “problema” tem início com algo chamado Relatório Rússia. A notícia se espalha no mundo inteiro. Com ela, espalha-se a praga também.

Tudo começa quando uma pessoa vê alguma coisa. E tudo resulta em suicídio. Ver essa coisa as leva a machucar outras pessoas e a si mesmo.

Há um toque de recolher nacional. As pessoas são recomendadas a trancar as portas, tampar as janelas e não olhar para fora.

A sociedade começa a acreditar que há algo errado. Mas o que é? Alguns intitulam de “criaturas”. Mil hipóteses são levantadas, quando nada se sabe. Mas que é uma ameaça, é.

A grande essência da realidade, no entanto, é encarar os próprios medos.

Em um mundo pós-apocalíptico, até que ponto vale viver?

“Como pode esperar que seus filhos sonhem em chegar às estrelas se não podem erguer a cabeça e olhar para elas?”

Caixa de Pássaros é um terror psicológico cheio de tensão. É o romance de estreia de Josh Malerman, cantor e compositor da banda de rock High Strung. E para um primeiro romance, Caixa de Pássaros é perversamente viciante.

A narrativa de Malerman é forte. O modo de contar a história é chamativo. A descrição é impressionante. Tanto das coisas que se vê, quanto das que se ouve.

Caixa de Pássaros é feito também de lembranças. A história é alternada entre passado e presente. Quatro anos atrás e o agora. O início e o hoje. O antes e o quatro anos depois. Os pensamentos de Malorie também compõem o enredo.

A constante presença de pássaros no decorrer da história é altamente intencional – e inteligente.

“Bem atrás deles, ela ouve algo que nunca ouviu. Parece um trovão. Um novo tipo de trovão. Ou pássaros, todos eles, em todas as árvores, que pararam de cantar e de piar, e estão apenas gritando.

O som ecoa uma vez, áspero, pelo rio, e Malorie sente um arrepio mais frio do que qualquer vento de outubro poderia provocar.

Ela rema.”

Caixa de Pássaros fala sobre estar seguro, estar preso, estar livre, estar perdido, estar sozinho. O leitor de Caixa de Pássaros vive a tensão da história. O medo do desconhecido é assustador. Se a história te pegar de jeito, prepare-se para a curiosidade e para uma constante aflição.

Com momentos marcantes e desfecho original, o livro pode ser além do que se espera. O desenrolar da história é fascinante. Mas não darei spoilers. Para quem curte o gênero, leia. Para quem não curte, conheça. Caixa de Pássaros merece ser lido.

“Você diz a si mesma que esperou quatro anos porque estava com medo de perder a casa para sempre. Diz a si mesma que esperou quatro anos porque queria treinar as crianças primeiro. Mas nada disso é verdade. Você esperou quatro anos porque aqui, nesta viagem, neste rio, onde loucos e lobos a espreitam, onde as criaturas podem estar por perto, NESTE DIA você terá que fazer uma coisa que não faz há muito mais do que quatro anos.

Hoje você vai ter que abrir os olhos.”

O Primeiro Telefonema do Céu, de Mitch Albom

O Primeiro Telefonema do Céu, de Mitch Albom 2E se o fim não for o fim?

O Primeiro Telefonema do Céu não é um livro de aspectos religiosos. Por mais que haja, sim, certas questões resvaladas nessas tortas linhas de uma história cheia de mistério, não se trata disso. O Primeiro Telefonema do Céu é, acima de tudo, uma história de fé.


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É logo na capa do livro que O Primeiro Telefonema do Céu expõe a grande questão que conduzirá o leitor em uma jornada de esperanças:

“Como você se sentiria se um dia recebesse uma ligação de alguém que ama muito – e que já se foi?”

É isso que acontece, certa manhã, com alguns dos habitantes da pequena cidade de Coldwater, em Michigan. Quando os telefones tocam, os moradores da cidadezinha atendem naturalmente. Naturalmente porque eles não sabem quem está do outro lado da linha. E quem está do outro lado da linha são pessoas que já morreram.

As vozes afirmam estar ligando do céu, um lugar lindo, sem dores e sofrimentos.

“É preciso começar de novo. É o que todos dizem. A vida, no entanto, não é um jogo de tabuleiro, e a perda de uma pessoa querida nunca é como “recomeçar um jogo”. É, acima de tudo, “continuar sem”.”

As pessoas que receberam esses telefonemas divergem nas dúvidas. Seria o maior milagre já ocorrido? Ou seria tudo um cruel trote comunitário?

Quando essas pessoas, que ligam do céu, entram em detalhes que só eles poderiam conhecer, os destinatários das ligações telefônicas se convencem. Eles foram os escolhidos para revelar ao mundo que o além existe.

A notícia atravessa as fronteiras da pequena cidade. É um grande surto de fé.

“Quando a multidão se acalmou, havia sete moradores de Coldwater de pé, afirmando terem feito o que parecia inimaginável: falar com o além.”

Em meio à novidade do milagre que para o mundo, um ex-piloto volta à cidade depois de passar os últimos meses na prisão. O que ele encontra, no entanto, é uma cidade totalmente transformada.

As igrejas estão lotadas. As ruas, intransitáveis. Milhares de pessoas se reúnem nos gramados para orar.

O ex-piloto, ao ver seu filhinho andando com um celular de brinquedo na mão, esperando uma ligação da falecida mãe, decide investigar essa história. Crente de que não há nada além da atual existência – ou descrente de muita coisa -, o ex-piloto determina-se a provar, também para si mesmo, que tudo não passa de uma grande farsa.

Os telefonemas do céu, cada vez mais frequentes, são colocados em dúvida. Mas a fé é grande. Cada personagem da história tem sua crença e seu motivo para acreditar. Ou não.

“Os vivos não podem falar com os mortos. Se pudessem, não achariam que eu também falaria? Acham que eu não trocaria o ar que respiro por uma única palavra de minha esposa? Isso não acontece. Não há Deus que faça algo assim. Não existe milagre nenhum em Coldwater.”

Em uma narrativa pronta para tocar a alma do leitor, O Primeiro Telefonema do Céu é uma grande reflexão sobre o poder da conexão humana.

Autor de As Cinco Pessoas Que Você Encontra no Céu, A Última Grande Lição e O Guardião do Tempo, o americano Mitch Albom faz com que O Primeiro Telefonema do Céu levante dúvidas necessárias.

Tratando de amor e esperança, pondo a imprensa e a mídia em sensível perspectiva, trazendo à tona questões ligadas à Igreja, introduzindo o poder, falando de Deus e ceticismo, contradizendo a visão de comunidade, questionando ligações da linha tênue da razão e da emoção, O Primeiro Telefonema do Céu proporciona ao leitor uma observação sensata acerca da fé.

Ressalto, aos que lerão o livro, e recomendo a leitura, que nem sempre o final das coisas acontecem do jeito que queremos ou esperamos. Mas, entre tantas coisas que O Primeiro Telefonema do Céu nos faz refletir, talvez o fim pode realmente não ser o fim.

“O medo nos faz perder a vida… Um pouco de cada vez… O que damos ao medo, retiramos… Da fé.”

A Hora da Estrela, de Clarice Lispector

A Hora da Estrela, de Clarice Lispector 2A primeira vez que li A Hora da Estrela foi em 2009. Depois, reli em 2013. E agora li mais uma vez. E acho que só agora, com a terceira leitura, que prestei a devida atenção em aspectos fundamentais da obra de Clarice Lispector. Aspectos fundamentais que formam um livro fundamental.

A Hora da Estrela é o último livro de Clarice Lispector. Por ter pouco menos do que 90 páginas, é considerado uma novela, e não um romance.


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Nascida na Ucrânia, em 1920, naturalizada brasileira, a escritora e jornalista Clarice Lispector tornou-se peça importante para a literatura com seus romances, contos e ensaios. Foi pouco tempo depois da publicação de A Hora da Estrela que Clarice foi hospitalizada e diagnosticada com um tardio e inoperável câncer no ovário. A hora da estrela Clarice havia chegado.

A curta novela, que contém 13 possíveis títulos, toma a atenção do leitor durante todo o enredo. É uma história de desamparo. Desamparo de todos nós.

“Não sabia que era infeliz. É porque ela acreditava. Em quê? Em vós, mas não é preciso acreditar em alguém ou em alguma coisa — basta acreditar. Isso lhe dava às vezes estado de graça. Nunca perdera a fé.”

Alguns dizem que a última obra de Clarice é quase uma extroversão da autora, relacionada constantemente por sua inflexão intimista. Os personagens de A Hora da Estrela nada se parecem com a escritora, mas o narrador da história tem lá suas semelhanças com Clarice.

A história contada no livro é a de Macabéa, nordestina que, depois de perder uma velha tia, vai para o Rio de Janeiro, onde aluga um quarto e consegue um emprego. Uma vida suficiente – mas só para ela.

“A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham.”

Jovem, Macabéa passa horas ouvindo a Rádio Relógio. Altamente impressionável, apaixona-se por Olímpico de Jesus, um metalúrgico também nordestino. Virgem, nunca entende nada muito bem. Explicar as coisas, então, muito menos. Macabéa acredita em tudo que existe. E também no que não existe. Na obediência de representar o papel de ser, é datilógrafa.

“Limito-me a humildemente – mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria humilde – limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa.”

Rodrigo S.M. é o narrador da história de Macabéa. Por vezes, a humilha. Impacientemente, diz que a moça vive à toa, que é teleguiada exclusivamente por si mesma, que é neurótica, delicada, sensual, nula e miserável. A vida de Macabéa, segundo o narrador, é feita de miséria.

“Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha.”

A vaga existência da personagem é levantada diversas vezes durante a narrativa do falso autor. Rodrigo S.M., no entanto, confessa que sente uma enorme necessidade de falar sobre Macabéa.

“Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela.”

Macabéa só quer viver. É um acaso na vida, mas quer viver. É só, mas quer viver. É só e anseia pela solidão. É um momento de encontro consigo mesma; de liberdade.

Parafuso dispensável, Macabéa não reage. Nem à vida nem à miséria que é sua vida.

Macabéa não é ninguém e não é para ninguém. É isso que diz o narrador, seu criador. Pequena, inocente e insignificante, Macabéa, em dado momento, vai até uma cartomante, que lhe prevê um futuro muito diferente do que a própria esperava. Nesse momento, a personagem enxerga a tragédia que é sua vida. Vida que viveu julgando-se ser feliz.

“Macabéa nunca tinha tido a coragem de ter esperança.”

Como já disse o narrador, “quem cai, do chão não passa”.

A verdade é que a história de Macabéa é só um pano de fundo em A Hora da Estrela. A grande atenção do leitor deve ser focada não na falsa protagonista, mas sim em Rodrigo S.M., o narrador.

O discurso metalinguístico, o título que ganha significado só no final do livro. Em meio ao desconforto que o leitor sentirá com a miserável vida descrita de uma nordestina qualquer, são as reflexões sinceras do narrador que importam.

Se Clarice tinha o costume de retratar as epifanias de personagens banais em cenas do cotidiano, sua última obra não é tão distante assim de seu estilo.

No final: Rodrigo S.M. se manifesta; Macabéa se revela; o leitor compreende; e Clarice encontra sua hora. A estrela nunca apagou. Ela continua brilhando.

“A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. Quem sabe, achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era.”

A Vida Louca da MPB, de Ismael Caneppele

A Vida Louca da MPB, de Ismael Caneppele 2A música popular brasileira vive sob muitos olhares. Olhares diversos, críticos, apaixonados. A MPB sempre foi cheia de histórias. No entanto, poucos olhares atentam para as loucuras dessas histórias. Em busca de detalhes pouco conhecidos das vidas de grandes artistas da MPB, o livro da semana levanta histórias e histórias de vidas de 17 figuras da nossa música que viveram intensamente. É A Vida Louca da MPB.


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Escrito por Ismael Caneppele, autor jovem e gaúcho, A Vida Louca da MPB traça uma minibiografia de cada uma das 17 estrelas que figuram a obra e que foram peças importantes para a história da música popular brasileira.

Em cada capítulo, dedicado à cada artista, Caneppele resume as vidas conturbadas dessas figuras e, por vezes, foca nos “causos” e nos escândalos de cada uma delas. São vidas de porres, quedas, vexames, idas e vindas.

As loucuras, os lados obscuros, excêntricos e engraçados, as curiosidades. O vício, a bebida e as drogas. A fama, o sucesso e o talento. A música e a dor. Artistas de 1930 a 2000, mitos da MPB. Carreiras brilhantes, de pressões e emoções. Em meio aos excessos e exageros, as 17 figuras são todas falecidas. Muitos tiveram, inclusive, morte precoce.

O livro abre com ninguém menos que Carmem Miranda, fenômeno da MPB. Estrela com vontade de brilhar, enérgica, celebridade de adereços e balangandãs, que atuava, cantava, dançava e inventava moda. Carmem era figurino, maquiagem e gestual. Carnavalesca, vivia na fantasia. Artista que, no auge da fama, sofreu o cansaço e o estresse. Virou uma máquina e as drogas eram o novo combustível.

“Contratada pela primeira vez para fazer shows na Europa, embarca num navio decidida a se livrar dos remédios e do álcool. Em alto-mar, tenta dormir, mas não consegue. Está esgotada, e o cérebro não desliga. Sucumbe aos soníferos, mas mesmo assim não consegue apagar. Exausta, delira, treme e entra em pânico.”

Entre amores rápidos e casamento precoce, surgiram problemas de saúde. Uma cirurgia plástica no nariz gerou complicações abafadas pela imprensa. O marido – e empresário – a levou à decadência, sugou sua grana e suas forças. Apesar de “ser artista”, sofreu com a solidão. Muitas viagens, muitos trabalhos. Depressão. Dependente de anfetaminas para ter pique e soníferos para apagar, morreu intoxicada aos 46 anos em 1955.

A Vida Louca da MPB segue então com Noel Rosa, o Poeta da Vila, revolucionário e autodestrutivo. Figura do samba dos anos 1930. Boêmio que, aos 25 anos, contraiu tuberculose e lesões nos pulmões. Não chegou aos 27.

O próximo é Mário Reis, mauricinho bem de vida da elite do samba. Recluso, discreto, elegante, vaidoso, perfeccionista, de canto suave e voz sussurrante, viveu nos mistérios, segredos e fofocas. Príncipe falido, se jogou na bebida e abandonou a vida artística. Foi e voltou, mais de uma vez, até falecer.

O Cantor das Multidões, Orlando Silva, magricela de grande voz, virou desejo das meninas. Delírio popular. Um acidente o deixou manco. Depois, sofreu com um problema dentário. Além do álcool, ganhou vício em morfina. Morreu em 1978 de isquemia cerebral.

Dalva de Oliveira entra para o time, cheia de histórias. Diva da MPB dos anos 1940 e 1950, foi vítima do conservadorismo, mas conseguiu enfrentá-lo. De personalidade forte, lutou contra o machismo. Com Herivelto Martins, ex-marido e parceiro, de relação conturbadíssima, expôs sua vida já nada íntima. Brigas públicas viraram publicidade. Viciada no conhaque, virou alcoólatra e teve cirrose. Entrou em coma por vezes e não aguentou. Em 1972, aos 55 anos, a estrela apagou.

“Em 1941, Dalva engravida novamente, mas a criança não chega a nascer. Numa das brigas, Herivelto enche a mulher de socos e pontapés, depois a empurra da enorme escada da sala, causando o aborto do filho. Como castigo, Dalva guarda o feto dentro de um vidro com álcool e o deixa exposto no banheiro da casa. Quando as visitas perguntam sobre o estranho objeto, a cantora afirma que ele serve para que Herivelto não se esqueça do que fez.”

Nelson Cavaquinho é outro boêmio do samba retratado no livro. Vagabundo assumido, sambista da melancolia e da morte, sempre com versos doloridos e temas pesados e sombrios, dormia em mesas de bares e desaparecia por dias. Contraiu gripe espanhola e, das bebidas e do cigarro, sofreu um enfisema pulmonar. Morreu aos 74.

Vinicius de Moraes não poderia ficar de fora. O poetinha, de muitos amigos, parcerias, casamentos, casos e paixões, de alma romântica e embriagada, foi vítima do uísque. Um dia, angustiado, trancou-se na cozinha e ligou o fogão. Aspirou o gás e quase conseguiu morrer, se sua sogra não tivesse arrombado a porta. Ficou muito doente, mas não largou a bebida, sempre com um copo na mão. Em 1980, morreu dentro da banheira.

Maysa dá as caras com seus escândalos e porres homéricos. Dondoca filha da elite, casada com herdeiro de sobrenome poderoso, intérprete internacional, bebeu e fumou desde cedo. Cantora da fossa, de semblante pesado, engordou, emagreceu, enriqueceu, sofreu e se embebedou. No alcoolismo, viu o mundo cair. Em 1977, seu carro perdeu o controle na ponte Rio-Niterói e bateu na murada central. Aos 40, morreu antes do resgate chegar.

Wilson Simonal é outra grande figura de A Vida Louca da MPB. Cara que vivia na ostentação, com carros de luxo, loiras, joias, roupas, dinheiro e sucesso. Garoto propaganda, símbolo, safo, cheio de gírias, foi o rei da pilantragem. Seu provável envolvimento com os militares da ditadura estragou tragicamente sua carreira. Aos 62, morreu de falência hepática no ano 2000.

Chama o síndico Tim Maia. Bebidas, drogas, vícios, pindaíbas. Exageros. De bom humor, falava demais. Era irracional, briguento, sem noção, irresponsável e doidão. Foi marmiteiro e coroinha. Carregou passagens pela polícia, processos, indenizações e penhores. Viveu na maconha, na cocaína e no uísque. Destruiu seu organismo e o coração não aguentou. Morreu em 1998.

O rockeiro baiano Raul Seixas também surge com seus vícios e abusos. Raul perdeu dinheiro e os dentes. Fumante desde cedo, com medo de morrer, não teve estrutura para lidar com o sucesso. O Maluco Beleza viu a saúde ser degradada. Em 1989, foi achado morto na cama, deitado embaixo das cobertas.

Um trio de nem tanto reconhecimento dá sequência à obra. Sérgio Sampaio, rotulado como maldito, viveu altos e baixos. Foi na década de 1970 que experimentou o estrelismo. Alternativo, viveu nas ruas. Da bebida, foi ao fracasso. Morreu aos 47, em 1994.

Itamar Assumpção foi o ícone da música independente. Exótico, esquisito, nunca desfrutou do glamour da vida de artista. Compositor, reservado, sem sucesso popular, figurou a vanguarda paulistana. Um câncer maligno se juntou ao abuso de drogas sem escândalos. Morreu aos 53 anos.

Júlio Barroso completa o trio com seu lado obscuro. De genialidade e loucura, entregou-se ao fumo e às bebedeiras. O nerd criador do grupo Gang 90 & Absurdettes caiu da janela do prédio onde morava em São Paulo em 1984. As notícias falaram em suicídio, mas até hoje não se tem certeza.

O vida louca que cantou a vida louca vida, Cazuza é peça grande. Exagerado, carioca, sempre otimista, foi apresentado às drogas quando era muito jovem. Com o Barão Vermelho, foi ao estrelato, ascensão. Cara do rock brasileiro, bebida, drogas e sexo. Cazuza sofreu com o organismo frágil. Vítima do HIV, sentiu os efeitos colaterais. Febres, dias de cama, convulsões. A doença e o tratamento não o deixaram parar de produzir. Incansável, enfraqueceu. Morreu em 1990, mas viveu o lado delirante da vida.

“Mesmo próximo de outras crianças, Cazuza é um menino que prefere passar a maior parte do tempo sozinho, criando um mundo somente seu. Exímio desenhista, sua maior habilidade é retratar mulheres seminuas. Seus desenhos são disputados a tapa pelos garotos da escola. Também é um incendiário, queimando praticamente todos os carrinhos de brinquedo. Em casa, sua diversão preferida consiste em jogar álcool dentro da privada e atear fogo.”

Figura do rock nacional, Renato Russo é outro artista de vida curta. Com suas letras, comportamento, política e poesia, marcou uma geração. Aos 15, descobriu uma doença nos ossos que comprometeu a cartilagem. Uma cirurgia malfeita o deixou um ano sem poder se movimentar. Curado, caiu nas drogas e na bebida. De personalidade, com relacionamentos, virou alcoólatra. Contraiu HIV e enfraqueceu. Sem ânimo, viveu curas e loucuras. Parou de comer, de se esforçar e se entregou à depressão. Morreu em 1996.

O livro fecha o time com Cássia Eller, cantora que escancarava as próprias diferenças. No palco, coçava o saco que não tinha, mostrava os peitos e cuspia no chão. Fora do palco, era doce e tímida. Lésbica, política, bebeu, fumou e cheirou. Engravidou, foi mãe e voltou a ser criança. Mas nunca se deixou virar careta. Quando criança, foi vítima da perigosa febre reumática, que causou uma lesão em seu coração. Aos 12, foi diagnosticada com arritmia cardíaca. Do álcool e das drogas, se afastou por um tempo. Veio o descontrole, o ataque de fúria. Transtornada, foi internada. E ali ficou.

Cássia, assim como todos os outros artistas de A Vida Louca da MPB, viveu sem moderação. Depois de mortos, permanecem vivos.

“Uma hora depois, a cantora tem a primeira parada cardiorrespiratória. Então, é reanimada e internada na unidade coronariana e, em seguida, vai para o CTI, onde sofre uma segunda parada. No final do dia, a equipe médica diagnostica uma isquemia, entupimento de artéria, na mão e no antebraço esquerdos. Depois das seis horas da tarde, tem mais duas paradas cardíacas. Ao fim daquele 29 de dezembro de 2001, com 39 anos recém-completados, a voz de Cássia Eller silencia para sempre. O Brasil fica mais triste. A MPB perde grande parte de sua loucura e poesia.”