Dois Irmãos, de Milton Hatoum

Milton Hatoum pode não ser extremamente conhecido, mas deve ser. Nascido em Manaus, cursou arquitetura, ensinou literatura e mergulhou na ficção. Considerado um dos maiores autores brasileiros contemporâneos, hoje com 64 anos, Hatoum coleciona obras merecidas de apreciação. Dois Irmãos, publicado em 2000, é o segundo livro do manauara. Traduzido para oito idiomas, venceu o Prêmio Jabuti de melhor romance do ano.

A obra de Hatoum acabou de ser adaptada para a televisão. A minissérie Dois Irmãos será exibida pela Rede Globo a partir de janeiro de 2017, com elenco consagrado.

Falemos do livro.


Compre na Amazon: http://amzn.to/2hLmRhn


Dois Irmãos é um baita drama familiar. A história da obra acompanha a trajetória de uma família disfuncional que vive em Manaus. O leitor de Dois Irmãos é invadido pelos problemas decorrentes dos membros dessa família.

Sim, há dois irmãos na família. Mais especificamente, dois irmãos gêmeos: Omar e Yaqub. E o grande centro desse drama é o fato de que os dois irmãos são inimigos. É na inimizade dos gêmeos que Dois Irmãos acontece.

Os pais, Halim e Zana, sempre formaram um casal completamente apaixonado, no sentido mais literal possível. No entanto, jovens, não pensaram no despreparo em ter filhos. E é talvez neste ponto que tudo se inicia.

Os dois irmãos da família manauara têm personalidades distintas sem cair no clichê de bom e mau. Porém, a preferência da mãe por um deles, juntamente com diversos acontecimentos, só piora a situação. A história de Dois Irmãos é de desarmonia familiar do início ao fim.

“Então, na manhã daquele sábado, Halim entrou cambaleando no Biblos. Os olhos dele fisgaram a moça no meio da sala. O viúvo Galib notou o fogo no visitante. Ficou paralisado, o peixe de boca aberta e olhos saltados na bandeja equilibrada na mão esquerda. Talheres silenciaram, rostos viraram-se para Halim. As pás do ventilador, o único zunido no mormaço da sala. Ele deu três passos na direção de Zana, aprumou o corpo e começou a declamar os gazais, um por um, a voz firme, grave e melodiosa, as mãos em gestos de enlevo. Não parou, não pôde parar de declamar, a timidez vencida pela torrente da paixão, pelo ardor que irrompe subitamente. Zana, a moça de quinze anos, ficou estonteada, buscou refúgio junto ao pai. O zunido do ventilador foi abafado por murmúrios; alguém riu, muitos riram, mas as gaitadas não alteraram a expressão do rosto de Halim. Tinha o olhar concentrado em Zana, e os poros todos da pele expeliam o vinho da felicidade. Tímido, mas corajoso num rompante, nem ele mesmo soube como atravessou a sala e segurou o braço de Zana, cochichou-lhe alguma coisa e se afastou, de frente para ela, encarando-a com o olhar devorador, dócil e cheio de promessas. Permaneceu assim até que as risadas cessaram, e um silêncio solene deu mais força e sentido ao olhar de Halim. Ninguém o molestou, nenhuma voz surgiu naquele momento. Então ele se retirou do Biblos. E dois meses depois voltou como esposo de Zana.”

O drama da família se agrava quando os pais decidem mandar um dos gêmeos para o Líbano. E o leitor que tente descobrir o motivo. O que passa pela cabeça desses pais?

O caso é que o irmão, uma hora, volta para o convívio da família. Como é essa volta? Conflito atrás de conflito. O enredo do livro é calcado na tensão familiar. Ódio, ciúme, rancor, desentendimentos constantes. Inveja, orgulho, desejo, ressentimentos marcados.

A conturbada relação dos dois irmãos nos é contada por um narrador excepcional. Um narrador que testemunha os acontecimentos da família em sua perspectiva de convívio. É o filho da índia Domingas, a empregada. Um narrador que, na verdade, quer descobrir quem é o seu pai. E você já pode imaginar que até aí a concorrência entre os gêmeos é fervescente.

“Yaqub e Omar nasceram dois anos depois da chegada de Domingas à casa. Halim se assustou ao ver os dois dedos da parteira anunciando gêmeos. Nasceram em casa, e Omar uns poucos minutos depois. O Caçula. O que adoeceu muito nos primeiros meses de vida. E também um pouco mais escuro e cabeludo que o outro. Cresceu cercado por um zelo excessivo, um mimo doentio da mãe, que via na compleição frágil do filho a morte iminente.”

Vale destacar a importância que Hatoum invoca ao nos contar uma história que acontece em Manaus. O retrato de vida da capital do Amazonas é muito bem trabalhado e desenvolvido. Um lugar tão nosso, tão brasileiro, que é pouco envolvido na nossa literatura. O livro é também uma visita à cultura do Norte.

Dois Irmãos é uma obra original e muito bem escrita. Milton Hatoum é, sim, um dos grandes autores brasileiros contemporâneos. A história dos gêmeos merece ser conhecida e desfrutada. Dois Irmãos é um dos tesouros da nossa literatura.

“Domingas andava preocupada com Yaqub, esperava notícias dele, mas ele só apareceu numa noite de pesadelo, em que minha mãe escutava os passos do Caçula e via o corpo alto surgir da cerca e golpear brutalmente o irmão. A imagem do rosto desfigurado a transtornava. Mas ela parecia sofrer com o desamparo de Omar. Encostada no tronco da seringueira em que o Caçula havia trepado, dizia: “Os dois nasceram perdidos”.”

Deixe um comentário