As Intermitências da Morte, de José Saramago

“No dia seguinte ninguém morreu.” É esse o início da obra a qual José Saramago reflete, em forma de narrativa, sobre a vida, a morte e o propósito, ou o despropósito, de nossa existência.


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Publicado em 2005, As Intermitências da Morte só podia ter sido escrito por José Saramago. A representação da morte não seria a mesma sem o estilo único do escritor português. De tanto cabimento, a figura da morte, criada no livro, existe em lógica. O nexo sarcástico e irônico de Saramago cresce no fundamento dessas intermitências.

O curso de As Intermitências da Morte leva ao ápice pela criatividade e, principalmente, pelo processo narrativo. O trunfo da obra é a ação de Saramago, que resolve personificar a morte.

“De Deus e da morte não se tem contado senão histórias, e esta é mais uma delas.”

Tão odiada pela humanidade, a morte suspende as atividades. É este o evento incomum que leva a história de As Intermitências da MorteQuem disse que a morte também não tem seus caprichos?

“No dia seguinte ninguém morreu.” Cansada das ofensas, exausta de tanto trabalho, a morte resolve abandonar o ofício. De repente, de uma hora para outra, as pessoas simplesmente param de morrer. E isso vira um grande problema.

“É assim a vida, vai dando com uma mão até o dia em que tira tudo com a outra.”

O leitor não pode esquecer: As Intermitências da Morte é um livro de José Saramago. E Saramago não escreveria apenas uma historinha em que as pessoas param de morrer e só.

Sempre há propósitos maiores nas obras de Saramago.

Quando a morte se aposenta, idosos e doentes agonizam em seus leitos, os serviços funerários entram em crise, os hospitais enfrentam superlotações, as companhias de seguro sofrem o choque, o governo fica desorientado e a Igreja, descontrolada.

“As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca.”

Aí está a essência por trás da obra. Pois é assim que o grande crítico Saramago projeta sua nova forma de criticar. A criação desse acontecimento, da morte que resolve parar de trabalhar, é isca para o julgamento de Saramago.

As Intermitências da Morte faz história para expor os vínculos que ligam uma coisa tão comum na sociedade, a morte, com o Estado, a Igreja e muitas outras vertentes, da imprensa à economia, dos hospitais à filosofia, das seguradoras às funerárias.

As Intermitências da Morte, por ser “um Saramago”, vai além das reflexões existenciais propostas. É, afinal, uma crítica à sociedade moderna.

Ao fazer da morte a personagem principal, Saramago une o bom humor ao desatino, a ironia à amargura, o sarcasmo a crítica. As Intermitências da Morte trata do início, do fim, da existência e muito mais. Vida, morte e propósitos. Ou seria a condição humana de sobrevivência?

“Permaneceu no quarto durante todo o dia, almoçou e jantou no hotel. Viu televisão até tarde. Depois meteu-se na cama e apagou a luz. Não dormiu. A morte nunca dorme.”

Ensaio Sobre a Lucidez, de José Saramago

Falar de Saramago já não é fácil… Agora, falar de Ensaio Sobre a Lucidez é mais difícil do que eu pensava. É um livro denso. Insensatamente denso. Difícil, cansativo, pesado. Mas é Saramago.

Acompanhe comigo: Imagine que estamos em ano eleitoral. É dia de eleição. O que se faz em um domingo de eleição? Todos os brasileiros saem de suas casas e vão votar. Certo? Pois imagine que isso não acontece.


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Grande parte – e quando eu digo grande, é grande mesmo, quase todos – não fazem isso. É dia de eleição e a população quase que inteira decide simplesmente não votar. Revolucionário, não?

O choque é tão grande que o que as autoridades eleitorais fazem… Remarcam a eleição para o dia que seria um possível “segundo turno”. Ótimo! Afinal, naquele dia estava chovendo, ninguém sairia de casa para uma votação desta. (contém ironia)

Pois bem. Novo dia de eleição. E agora sim, a população está saindo de casa para votar. Mas ainda é grande o número de abstenções. Mas não tem problema! “Vamos computar os votos que temos”, eles pensam. O que ninguém esperava é que quase setenta por cento dos votos seriam em branco.

É a partir desse exato ponto/conceito que Ensaio Sobre a Lucidez discorre.

“O segundo eleitor tardou dez minutos a aparecer, mas, a partir dele, se bem que a conta-gotas, sem entusiasmo, como folhas outonais desprendendo-se lentamente dos ramos, os boletins de voto foram caindo na urna.”

O país é um país qualquer. As autoridades eleitorais vivem crises durante toda a obra. A catástrofe atinge instituições e partidos políticos, todos divididos sem conto de fadas. Caiu-se a credibilidade. Privilégios são escancarados. Os eleitores estão cansados com a atual realidade. A essência? Uma manifestação silenciosa, uma indignação popular.

Ameaçados, os governantes, o que fazem? Entregam a cidade a si própria. Abandonam tudo. Isolam a população.

Não me venha falar em absurdos, ok? Pense e repense. Qualquer semelhança…

“A esperança é como o sal, não alimenta, mas dá sabor ao pão (…)”

Ensaio Sobre a Lucidez tem ligação com Ensaio Sobre a Cegueira (primeira resenha aqui do Ser de Livros). Os governantes que vivem a catástrofe dos votos em branco neste livro viveram a catástrofe da cegueira no outro. Personagens se enlaçam entre as obras paralelas. Se o ser humano havia perdido a visão, agora ele NÃO perdera a lucidez.

Em Ensaio Sobre a Lucidez, Saramago critica, severa e sarcasticamente, o poder político. Ele usa o símbolo da democracia, que é o voto, para alertar, quase como quem grita, sobre a importância e a necessidade do contínuo questionamento. Lucidez, afinal, é enxergar.

“Voltemos ao sal e à esperança, que quantidade dela será conveniente pôr para não tornar intragável aquilo de que se estava à espera (…)”

6 romances de José Saramago

6 romances de José SaramagoO povoado português da vila de Golegã não cogitava que aquele menino, filho e neto de agricultores, nascido no dia 16 de novembro de 1922, se tornaria um dos escritores mais notáveis mundialmente. José Saramago cresceu em Lisboa e desde pequeno demonstrou seu fascínio pela cultura, pelos estudos e pela literatura.

Prêmios não faltam, incluindo o Nobel de Literatura de 1998 e o Prêmio Camões de 1995. Com alto reconhecimento pela prosa em língua portuguesa, Saramago ficou conhecido também por seu ateísmo e iberismo. Foi membro do Partido Comunista Português, trabalhou em jornal, escreveu crônicas, contos, poesias, peças teatrais…

A marcante narrativa de Saramago, da utilização de frases longas, da pontuação que foge do tradicional, dos diálogos correntes, da interação proposital do fluxo de consciência entre o real e o imaginário, é resultado de sua grande característica textual que se dá ao estilo oral da linguagem. Característica que o tornou único e altamente respeitado no tratamento da língua portuguesa.

José Saramago faleceu em 2010, no dia 18 de junho, aos 87 anos. Eu poderia falar de muitas de suas obras, mas separei seis romances que estão entre os mais conhecidos do grande escritor português. Saramago merece.

Memorial do Convento

Publicado em 1982, é uma grande crítica, assim como tantas obras de Saramago. Exploração, classe social, natureza humana, autoridade e poder político. Acima de tudo, corrupção religiosa. 

O Evangelho Segundo Jesus Cristo

De 1991, conta a história da vida de Jesus, mas de uma forma contemporânea e, claro, crítica. Maria Madalena, crucificação, distância da representação tradicional do Evangelho. Polemicamente, o livro que perseguiu Saramago e o fez abandonar Portugal.

Ensaio Sobre a Cegueira

Primeira resenha do Ser de Livros (leia ou releia aqui). Publicado em 1995, uma das obras mais famosas do escritor, virou filme em 2008. Romance norteado por uma cegueira que toma o mundo e o leitor de forma forte e surpreendemente sofrida. Um tapa na cara da sociedade e do ser humano.

O Homem Duplicado

Escrito em 2002, tem no enredo um professor de História que descobre ter um sósia. Um confronto embaraçado. Questão de identidade. Suspense obscuro de Saramago.

Ensaio Sobre a Lucidez

Crítica, outra, às instituições de poder político, trama governo, autoridade e democracia. Internamente conectado a Ensaio Sobre a Cegueira, um especilho moderno de 2004.

As Intermitências da Morte

Vida e morte. Qual o sentido – se há algum sentido – da nossa existência? Publicado em 2005, amplamente temperado pela ironia e sátira de Saramago, reflete e critica (!) a sociedade contemporânea, a Igreja, o governo, a imprensa, a economia, a filosofia, a família, a saúde, a funerária e por aí vai. Característica maior: a personificação da morte e seus sentimentos.

Em junho, trago a resenha de um desses livros para cá. Aguarde!


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Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago

Ensaio Sobre a Cegueira, de José SaramagoImagine-se ficando cego. Do nada, de repente, “num piscar de olhos”, você não vê mais nada. Ao contrário da escuridão, porém, você só enxerga um fundo branco. Tudo branco!

Agora imagine que não é só você que está com esse problema. O mundo todo está ficando cego!

É assim que Saramago conduz Ensaio Sobre a Cegueira, um dos meus livros prediletos.


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O acontecimento fantástico, essa cegueira que atinge toda a população, seria uma doença nova. Ou seria uma maldição? O caso é que as pessoas param de enxergar e veem o mundo todo branco. O problema é que a ciência não consegue diagnosticar. Curar, então, muito menos.

Diante dessa tragédia, Saramago narra o desespero, logo no início do livro, de forma excepcionalmente realista.

“Num movimento rápido, o que estava à vista desapareceu atrás dos punhos fechados do homem, como se ele ainda quisesse reter no interior do cérebro a última imagem recolhida, uma luz vermelha, redonda, num semáforo. Estou cego, estou cego, repetia com desespero enquanto o ajudavam a sair do carro, e as lágrimas, rompendo, tomaram mais brilhantes os olhos que ele dizia estarem mortos.”

Ensaio Sobre a Cegueira arrebenta a pedra preciosa da humanidade, aquela conquistada de forma árdua, lapidada, há anos, dura e penosamente: o Estado de direito.

As vigas das relações governamentais, institucionais, civis, sociais e familiares são simplesmente desmanteladas. Conforme o homem perde a visão, o ser humano retorna ao seu estado ancestral.

“Mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos.”

Quando se dá o início da epidemia, a primeira medida do governo é jogar as vítimas em quarentena. Onde? Dentro de um sanatório desativado.

Sem auxílio de agentes de saúde ou de funcionários do governo, com alimentação deixada no pé da porta pelo exército enroupado com vestimentas de proteção, as pessoas viram objetos. E a meta mais importante, num primeiro momento, é mantê-las longe, para que não contaminem mais ninguém.

“Os primeiros a serem transportados para o manicómio desocupado foram o médico e a mulher. Havia soldados de guarda. O portão foi aberto à justa para eles passarem, e logo fechado. Servindo de corrimão, uma corda grossa ia do portão à porta principal do edifício, Andem um pouco para o lado direito, há aí uma corda, ponham-lhe a mão e sigam em frente, sempre em frente, até aos degraus, os degraus são seis, avisou um sargento. No interior a corda abria-se em duas, um ramo para a esquerda, outro para a direita, o sargento gritara, Atenção o vosso lado é o direito.”

Claramente, como a cegueira, a medida em nada resolve. Dentro da quarentena, excesso de gente e suas consequências. Fora da quarentena, a evolução da epidemia.

Tudo se desenrola até que não sobre mais ninguém que enxergue. Exceto uma única pessoa… Uma mulher que, inexplicavelmente, continua com visão.

É ela quem vê as ruas tomadas por milhares de cegos. Cegos perdidos. Cegos que, por estarem cegos, não acham mais o caminho de casa.

É ela quem vê a angústia dos seres humanos famintos saqueando supermercados. É ela quem vê o lixo e a imundice. É ela quem vê, também, as mortes alheias, as loucuras, os perigos, a tragédia.

“O grupo, umas quinze pessoas, afastou-se. Ao longo da rua outros grupos apareciam, pessoas isoladas também, encostados às paredes havia homens a aliviar a urgência matinal da bexiga, as mulheres preferiam o resguardo dos automóveis abandonados. Amolecidos pela chuva, os excrementos, aqui e além, alastravam na calçada.”

Publicado em 1995, Ensaio Sobre a Cegueira é um dos livros mais lidos de José Saramago no Brasil. A popularidade virou filme com elenco internacional. Dirigido por Fernando Meirelles, o filme foi gravado, em várias cenas, em São Paulo.

Saramago ganhou o prêmio Nobel de Literatura somente três anos depois, em 1998. Até hoje, é o único escritor de língua portuguesa que recebeu tal premiação.

O estilo de Saramago é apaixonante. Amargo e irônico, o texto de Saramago, de narrativa original, entre regras de pontuação e questionamentos perturbadores, lhe vale a fama tardiamente alcançada, com quase 60 anos. Mas foi nessa terceira idade, também, que o escritor mais produziu.

A cegueira de Saramago é intolerante ao falar do egoísmo, é egoísta ao falar da selvageria, é selvagem ao falar da indiferença e é indiferente ao falar dos costumes da sociedade moderna.

“Depois, como se acabasse de descobrir algo que estivesse obrigado a saber desde muito antes, murmurou, triste, É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade.”

Ensaio Sobre a Cegueira mais do que samba na cara sociedade, é mais do que um soco no estômago da humanidade. Ensaio Sobre a Cegueira abre os nossos olhos de forma radical. Nos faz ver o mundo forte e intensamente e perceber que, enxergando tudo ou nada, cores, preto ou branco, pouco importa. Todos somos cegos ao ignorar propositalmente o que está ao alcance de nossa visão.

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”