O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway

O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway 2Haja Caymmi pra explicar o mar de Hemingway.

Sim, hoje vamos falar do mar. Não, não é o mar da música de Caymmi. É o mar da literatura.

Mas também não é o mar de Robinson Crusoé, nem de Moby Dick, nem do Pi, de As Aventuras de Pi. O mar de hoje é o mar de Hemingway. É o conhecido mar do best-seller O Velho e o Mar.


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Romance mais famoso de Ernest Hemingway, O Velho e o Mar foi escrito no período pós-guerra. O escritor americano faleceu 10 anos após escrever o tal livro, mas sua obra ficou conhecida mundialmente.

O Velho e o Mar conta a história de Santiago, pescador que vive numa pequena vila no litoral da ilha de Cuba. Consciente da imensidão do mar, o velho Santiago cobiça pescar um grande peixe.

“Tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos que eram da cor do mar, alegres e indomáveis.”

O curioso é que o velho não quer pescar um grande peixe para tê-lo como alimento ou mesmo vendê-lo para ganhar dinheiro. Santiago quer sentir o orgulho da vitória.

“Às vezes ouviam-se vozes num barco. Mas na maior parte deles reinava silêncio, apenas quebrado pelo bater dos remos na água. Depois de saírem da boca da baía, separaram-se todos e cada qual se dirigiu para o ponto do oceano onde esperava encontrar peixe. O velho sabia que ia muito para o largo; deixou o aroma da terra para trás e continuou a remar em direção ao agradável aroma da madrugada do oceano.”

Depois de 84 dias sem pescar nenhum peixe, o velho solitário acaba se deparando com um de tamanho descomunal. A partir daí, o livro mergulha na relação do homem com o animal, dos sentidos e pensamentos humanos por um peixe disposto a lutar pela vida até onde puder.

“Estava radiante com aquela pressão suave na linha e, passados poucos segundos, sentiu um esticão violento e incrivelmente forte. Era o peso do peixe, e deixou a linha correr para baixo, para baixo, para baixo, desenrolando os dois primeiros rolos de reserva. À medida que ia descendo, deslizando ligeiramente pelos seus dedos, podia ainda perceber o grande peso, embora a pressão no polegar e no indicador fosse quase imperceptível.”

De enredo simples, a obra de Hemingway é tão importante por levantar a tirania do ser humano com uma história que fala sobre a eterna luta de poder entre o homem e a natureza.

Com desfecho singular, O Velho e o Mar retrata a maior lição que o personagem poderia aprender, depois de um longo tempo de solidão na vastidão do mar. O ser humano é muito pequeno diante da imensidão da natureza.

“O mar é generoso e belo. Mas pode tornar-se tão cruel e tão rapidamente, que aves assim, que voam mergulhando no mar e caçando com as suas fracas e tristes vozes, são demasiado frágeis para enfrentá-lo.”

Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles

Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles 2Aos quase 93 anos de vida, a escritora Lygia Fagundes Telles foi indicada ao Prêmio Nobel de Literatura 2016. E nada melhor do que, para a primeira leitura da autora brasileira, o primeiro romance escrito por ela: Ciranda de Pedra.

Publicado em 1954, Ciranda de Pedra já foi utilizado como base para duas telenovelas homônimas da Rede Globo, em 1981 e em 2008.


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A obra é dividida em duas partes. Na primeira, o leitor acompanha a vida de Virgínia quando ainda é menina, criança. Caçula de três irmãs, Virgínia sofre o baque da separação dos pais. Mas só ela que vai morar com a mãe, Laura, e o padrasto, Daniel, enquanto as irmãs, Bruna e Otávia, ficam com o pai, Natércio.

Na primeira parte do livro, a visão de Virgínia assiste à crise que desestrutura a família burguesa altamente polida. A menina, confusa, tenta se adaptar a uma vida acompanhada da loucura da mãe, do rancor do pai, do desespero do padrasto, da hostilidade das irmãs e do amor platônico por um garoto.

Pela visão ingênua de Virgínia, conhecemos seus sonhos, suas imaginações, seus pensamentos, seus desejos, seus medos e, principalmente, seus sentimentos.

“- (…) Virgínia, você fez agora um gesto que fazia quando era pequenina assim… Quando qualquer pessoa se despedia e ia embora, você ficava olhando para o lado por onde a pessoa tinha desaparecido, abria os braços e repetia, ah!… cabou!… cabou!… Então dava uma certa tristeza porque a gente ficava com a impressão de que a pessoa não voltaria nunca mais, que estava mesmo tudo acabado, acabou-se! Pois é, acabou-se.”

A catástrofe familiar de Ciranda de Pedra aumenta e o leitor chega à segunda parte da obra. Depois de vários anos, interna num colégio de freiras, Virgínia volta ao convívio da família já jovem adulta. Com outros olhos, a garota vê as transformações de todos e dela mesma.

Virgínia vê que as aparências enganam e que ninguém é realmente o que parece ser.

“Com um gesto lento, Virgínia amarfanhou entre os dedos uma folha seca que o vento atirara para dentro do carro. Sentiu as mãos geladas embora a tarde estivesse quente. “É a volta”, justificou para si mesma. “Depois de tanto tempo, por maior que seja o desligamento, a gente sempre se impressiona um pouco”, concedeu. Mas sentia-se vagamente decepcionada. A verdade é que se julgara muito mais invulnerável àquela mistura de emoções que lhe davam obscuramente uma sensação de insegurança.”

Quando volta à família, certas coisas permanecem iguais, mas outras não. Com o tempo, todos podem mudar. Ninguém sabe tudo de ninguém e ninguém sabe nada de ninguém.

O que na primeira parte da obra era focado na família e no sofrimento de Virgínia, a segunda parte é possuída pelo amor. O drama da família vira a delação do romance. A roda das relações gira. Há mudanças, caminhos se cruzam. Os amores chegam até certo ponto inesperado ao leitor. É a normalidade nem tão normal assim. São as aparências…

Nessa gira, porém, a vida de Virgínia carrega marcas eternas que a obrigam a conviver da melhor, ou pior, maneira possível.

“- (…) Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher as rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas.”

Um dos sonhos da menina Virgínia nunca mudou. Ela sempre quis entrar na roda. Solitária, sempre desejou isso. Ela mal sabia que quando entrasse, nem tudo seria como imaginava ser.

O marco inicial de Lygia Fagundes Telles é caracterizado pela sensibilidade da autora para com os sentimentos dos personagens. Em Ciranda de Pedra, Lygia explora as características psicológicas dos personagens de ótima maneira.

Ciranda de Pedra é muito bem descrito já no texto da contracapa: “Nessa ciranda de sentimentos, cada um guarda seus segredos, anseios e frustrações (…)”. Uma roda de sensações, uma gira de sentimentos… É a ciranda da vida.

“(…) O tempo incumbira-se de suavizar-lhe os traços e agora ali estava refletida no espelho a delicada imagem de uma moça sorrindo de si mesma na tentativa de reconstituir a antiga expressão da meninice. Onde se escondera o rostinho anguloso, agressivo?

– Libertei-me.”

O Chamado do Cuco, de Robert Galbraith

O Chamado do Cuco, de Robert Galbraith 2Se era para ser um pseudônimo permanente ou uma boa surpresa a ser revelada com o tempo, não deu certo. Mal deu tempo de Robert Galbraith lançar sua primeira obra que a grande informação foi vazada. Robert Galbraith era, na verdade, J.K. Rowling. Isso mesmo. J.K. Rowling, autora da série Harry Potter.

Se Rowling ficou feliz ou insatisfeita com o vazamento, pouco importa. O fato é que, para o livro, deu certo. A curiosidade era grande. O que a autora da indiscutível série Harry Potter, adotando um pseudônimo, estaria fazendo com uma história sondada por um detetive particular? Quem leu O Chamado do Cuco sabe responder.

O livro não é para ser lido pensando na magia de Hogwarts ou no nosso querido Harry. O Chamado do Cuco não tem nada a ver com o universo mágico que deu a Rowling tamanho sucesso. O livro é para ser lido com uma atenção muito grande, uma atenção voltada para uma nova grande história, uma atenção mais que merecida para o primeiro romance policial de O Chamado do Cuco, de Robert Galbraith.


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Vamos a história: a modelo Lula Landry morreu misteriosamente. Ela caiu da cobertura do prédio em que morava, em Londres. Como a modelo tinha fama e passado marcado por drogas e depressão, a morte é tomada como suicídio.

O caso está fechado, mas o irmão adotivo de Lula, John Bristow, não concorda com o desfecho e contrata o serviço de Cormoran Strike, um detetive particular, para investigar o caso mais a fundo.

Pois bem. É com Cormoran Strike que a história de Galbraith é conduzida. O detetive, que tem um jeito muito particular, grandalhão, desastrado, introspectivo e cheio de dívidas, tem um belo trabalho pela frente. Desvendar esse mistério é muito pior do que parece.

“Strike se lembrava das imagens na televisão: o saco mortuário preto numa maca, bruxuleando numa tempestade de flashes de câmeras ao ser levado para uma ambulância, os fotógrafos espremendo-se em volta quando a ambulância partia, levantando as câmeras para as janelas escurecidas enquanto luzes quicavam no vidro preto. Ele sabia mais da morte de Lula Landry do que pretendia ou queria saber; o mesmo poderia ser dito de quase todo ser senciente da Grã-Bretanha. Bombardeada com a história, a pessoa se interessa a contragosto e, antes que se dê conta, está tão bem informada, tão cheia de opiniões sobre o caso que teria sido desqualificada a se sentar num banco de jurados.”

Veterano na guerra do Afeganistão, o detetive perdeu uma perna em combate e carrega uma história de família um tanto quanto embaraçada e vergonhosa. Quando tudo vai de mal a pior, tudo parece ir à pior mesmo. Strike briga com a noiva e vai morar no escritório em que trabalha.

Em meio a essa vida conturbada de detetive, Robin, uma jovem garota, aceita o trabalho de ser a nova assistente temporária de Strike.

Com a ajuda de Robin, o detetive parte para a investigação do caso Lula Landry. Essa investigação dura o livro todo e o leitor, enquanto aguarda o desfecho, precisa acompanhar o trabalho de Strike com atenção às reflexões abordadas durante a obra.

“Porém, Strike sabia que os verdadeiramente iludidos desprezariam alegremente trivialidades como provas de DNA, citando contaminação ou conspiração. Eles viam o que queriam ver, cegos à verdade inconveniente e implacável.”

Detalhista, Galbraith nos presenteia com essa história que critica, primeiramente, o universo da fama. Um mundo de superficialidades, falsidades, trapaças, obscenidade e obsessão. A imprensa inglesa também é criticada.

“O que lamentamos é a imagem física que flutua por uma multiplicidade de tablóides e revistas de celebridades; uma imagem que nos vende roupas, bolsas e uma ideia de fama que, em sua morte, provou-se vazia e transitória como uma bolha de sabão.”

Apesar de todas as dificuldades encontradas na investigação, de todas as pedras no caminho, o detetive Cormoran Strike se torna um personagem arrebatador e Robert Galbraith segura o leitor em uma trama policial envolvente.

No fim, há de se admitir. Mesmo J.K. Rowling se reinventando, saindo das fantasias infanto-juvenis e entrando no universo do mistério, sua genialidade para a literatura é imensa.

“Como era fácil tirar proveito da tendência de uma pessoa à autodestruição; como era simples empurrá-las para a inexistência, depois recuar, dar de ombros e concordar que este fora o resultado inevitável de uma vida caótica e catastrófica.”

O País do Carnaval, de Jorge Amado

O País do Carnaval, de Jorge Amado 2Será que o Brasil é só e somente o País do Carnaval?

Jorge Amado, grande escritor brasileiro, tinha lá suas dúvidas. E tinha também suas certezas.

O País do Carnaval é o primeiro romance de Jorge Amado, que escreveu a obra quando tinha 18 anos. De forma crítica e investigativa, o autor aborda o Brasil em sua imagem festiva e contraditória.


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O País do Carnaval, publicado em 1931, quase foi intitulado de Os homens que eram infelizes sem saber por quê. Só não foi chamado assim porque, como justificou o próprio Jorge Amado, “a gente tem vergonha de certas confissões.”

Quem protagoniza a obra é Paulo Rigger, um brasileiro que, depois de sete anos estudando Direito em Paris, volta ao Brasil. Inquieto, o personagem, filho de um rico produtor de cacau, retorna ao país de origem e não se identifica com o lugar, não o reconhece.

“Paulo Rigger andava na rua, ao léu. Sentia-se um estranho na sua pátria. Achava tudo diferente… Se aquilo lhe acontecia no Rio, que seria na Bahia, para onde iria residir em companhia da sua velha mãe?… Poderia, conseguiria viver? E tinha uma grande nostalgia de Paris…”

Rigger, em Salvador, se une a um grupo de intelectuais e todos logo se tornam grandes amigos. A semelhança entre eles é que todos estão insatisfeitos e resolvem buscar um sentido para a vida. A diferença entre eles é que cada um tem sua finalidade, sua opinião, seu ponto de vista. Todos iguais e diferentes. Os distintos pensamentos dos amigos formam os debates. E os debates formam o livro.

As eternas discussões que Jorge Amado retrata em O País do Carnaval levam o leitor a pensar, refletir e querer debater junto com os personagens.

Os amigos discutem sobre muitas questões. Muitas, mesmo. Falam de política e de religião, de poesia e literatura, de jornalismo e advocacia, de amor e sexo, de cobiça e traição, da natureza, do trabalho, da inteligência, da filosofia.

Com os debates de seus personagens, Jorge Amado fala de preconceito, de machismo, de romantismo. Fala de festa. O País do Carnaval fala, sobretudo, de fé e de felicidade.

“- Coitado! Talvez seja infeliz. Talvez seja feliz. Que tente. Sempre é uma grande coisa poder tentar ser feliz.”

A obra se inicia falando de ceticismo. Jorge Amado é cético ao falar de ceticismo. Seus personagens, os amigos, também são céticos. Até certo ponto.

Um grande trunfo de O País do Carnaval é o poder do autor sobre o leitor. Ele faz o leitor se apaixonar por algo e depois se desapaixonar. Como a vida…

Jorge Amado induz o leitor a acreditar em algo e depois duvidar desse algo. E isso é uma coisa que acontece com os personagens durante o enredo. Uma coisa que provavelmente acontecia também com o próprio autor.

A dúvida ronda fortemente O País do Carnaval. Nos debates entre os personagens, são levantadas questões como: o que é ser feliz e o que é ser infeliz? O que é a satisfação e a insatisfação? Ilusão e desilusão? Sonhos e fracassos? O País do Carnaval levanta a dúvida sobre a própria dúvida.

“- Ora, Rigger, deixe disso. Procure viver para a dúvida. Viver para o sofrimento. Para a própria insatisfação. Em vez de combater a dúvida, adorá-la. Eu duvido de tudo.”

Discutir muitas questões em um único livro pode virar uma bagunça. Mas o fato de cada personagem acreditar em uma coisa, do amor a religião, para achar um sentido para a vida, controla o caos filosófico. São as crenças de cada um que carrega a história.

“(…) e, se acha que isso trará a Felicidade para sua vida, não vacile: case-se. Eu não lhe aconselho o casamento como meio de resolver o problema da vida. Não o tentei. Sinto, entretanto, que se o tentasse, seria infeliz. Tão infeliz como sou hoje. O meu gênio… Os meus ciúmes… A vida passaria a ser um inferno. Para mim e para Ela. Mas se você tem certeza de que encontrará no amor, no casamento, a finalidade da sua vida, não ouça conselhos, não dê ouvidos a ninguém. Case-se e vá viver. E se for infeliz? Uma bala resolve tudo. Resolve todos os problemas da vida.”

Voltamos ao ceticismo? Levantam-se dúvidas.

“Viver por viver” seria a solução? Levantam-se dúvidas.

Voltamos às dúvidas? Levantam-se dúvidas.

As dúvidas que permeiam O País do Carnaval são as mesmas que sondam a vida do ser humano. As dúvidas servem para alcançar os propósitos da grande tragédia que é a vida.

“Na última página, em vez do clássico Fim, lia-se Terminou. José Lopes sorriu. Passou o lápis sobre o Terminou. Substituiu por Principiou. Ficou cismando em que ninguém compreenderia que, só depois de terminado o livro, de terminadas as experiências, de desiludidos todos de encontrar o sentido da vida, esta começava. Principiava a tragédia de todo dia…”

Em O País do Carnaval, Jorge Amado fala das lutas, das gerações. E tudo era, na verdade, o espelho da situação do país na época. O Brasil passava pela Revolução dos 30, quando o autor escreveu a obra. O país procurava redefinir seus caminhos.

O País do Carnaval retratava a atual mocidade, a juventude brasileira que, desesperada e entediada, vivia o drama e o caos que se passava no Brasil. Tudo era muito real. E quem disse que essa realidade mudou com o tempo?

O País do Carnaval estava entre os livros de Jorge Amado que foram queimados em praça pública em Salvador, em 1937, por ordem da polícia do Estado Novo.

Por vezes irônico e satírico, Jorge Amado, em seu primeiro romance, fala da moral brasileira, cutucando as feridas, atingindo os princípios. Ao mesmo tempo, expõe a sensibilidade humana, com suas fraquezas e contradições.

“- Esse negócio de moral é uma tolice. O homem de talento não tem moral. E você, Gomes, tem talento. É quanto basta. Só um defeito não é perdoável no homem: a burrice.”

Diz-se que O País do Carnaval é quase um rascunho de Jorge Amado. Na obra, o autor atravessa a linha romântica e levanta suas próprias dúvidas, seus próprios sentimentos, sua inquietação. O livro seria como se fosse parte da vida do autor e sua trajetória até então.

O País do Carnaval traz, por fim, um grupo de amigos que poderiam ser qualquer brasileiro comum. No debate, tão literário e tão real, a intenção é uma só: chegar à finalidade para resolver assim o problema da vida.

O Brasil poderia ser mais do que o País do Carnaval. Rigges, o protagonista, acredita que a festa popular mantém o povo alienado. A festa popular, no entanto, é só um pequeno exemplo das contradições cotidianas da vida.

“O Brasil continuou o mesmo. Não melhorou, nem piorou. Feliz Brasil, que não se preocupa com problemas, não pensa e apenas sonha em ser, num futuro muito próximo, “o primeiro país do mundo”…”

A Metamorfose, de Franz Kafka

A Metamorfose, de Franz 2Nunca imaginei que compraria um Kafka por vontade própria. Nunca. Já sabia um pouco sobre a fama desse autor. Já havia pesquisado sobre sua obra. Mas comprar um de seus livros por livre e espontânea vontade, não. Mas também não foi tão espontânea assim…

Comprei um Kafka quando cursava Jornalismo. Um professor do curso abriu um grupo de leitura e o interesse veio de cara. Primeiro encontro, primeiro dia, primeira leitura: Kafka.

A escolha parecia ser um jeito de falar: “Vamos começar com tudo”. E que tudo!

Não tinha o tal livro na minha estante e, com o primeiro encontro do grupo de leitura marcado, fui comprá-lo. O livro era fino, não precisaria de muito tempo para terminá-lo. O que eu não sabia, por nunca ter lido Kafka, é que A Metamorfose era um pesadelo.


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Veja bem… Ler Kafka é desconfortante. Essa sensação incômoda, que lhe toma durante toda a leitura da obra de Kafka, é altamente intencional. E isso tem lá o seu lado bom.

A narrativa de Kafka, pelo menos em A Metamorfose, não é difícil. A leitura é fácil, a linguagem é clara. O problema é que Kafka atordoa. A história que Kafka tem para contar é impetuosamente trepidante.

“Agora Gregor não comia quase mais nada. Só quando por acaso passava pela comida posta para ele é que mordia por brincadeira um bocado, conservava a porção na boca durante horas e depois, na maioria das vezes, a cuspia fora. Penso a princípio que era a tristeza pelo estado do seu quarto que o impedia de comer, mas foi justamente com as mudanças ocorridas nele que se reconciliou bem cedo.”

Aos que desconhecem a história, vou resumir em duas frases – e você vai ver que é o suficiente para entender o desconforto que o enredo causa ao leitor.

Gregor Samsa é um jovem trabalhador que, certo dia, acorda com uma sensação estranha. Inexplicavelmente, ele está transformado em um inseto horrendo, gigante e medonho.

É assim que Kafka abre o livro, resumindo essa absurda situação em uma única frase:

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.”

Contrariando o comum, Kafka já joga ao leitor o conflito principal na primeira frase do livro. Mas não é só essa abertura que marca a narrativa do autor tcheco em A Metamorfose.

Durante toda a obra, Kafka é muito frio ao contar a história que ronda A Metamorfose. Depois da pancada de “[…] encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”, o tom da narrativa que segue é muito tranquilo, sem ápices e sobressaltos. É tudo muito natural!

E o absurdo da história de Kafka vai além. Gregor, o personagem principal, que acorda e se vê como um inseto, não está sonhando. Ele é transformado em um asqueroso inseto e isso é verdade. É a dura vida real.

“Entretanto, quando mais uma vez, depois de esforço igual, ficou deitado na mesma posição, suspirando, e viu de novo suas perninhas lutarem umas contra as outras, possivelmente mais que antes, e não encontrou nenhuma possibilidade de imprimir calma e ordem àquele descontrole, disse novamente a si mesmo que era impossível continuar na cama e que o mais razoável seria sacrificar tudo, caso existisse a mínima esperança de com isso se livrar dela.”

Depois de convencer o leitor disso, que o personagem virou um inseto e é assim que ele vai permanecer, Kafka relata as consequências dessa transformação na vida familiar de Gregor. O negócio é que o personagem é a pessoa que proporciona à família a confortável vida que eles têm. E a organização familiar de Gregor é obrigada a se adaptar àquela nova condição.

Gregor, inseto, coitado, sem poder falar, assiste a grande e drástica mudança com culpa e tristeza. O provedor vira parasita, literalmente.

“Mas Gregor não tinha a menor intenção de causar medo a ninguém, muito menos à irmã. Simplesmente havia começado a girar o corpo para voltar ao seu quarto e isso de qualquer modo chamava a atenção, uma vez que, em consequência do seu estado enfermiço, precisava, na difícil manobra, ajudar com a cabeça, que ele levantava várias vezes e batia contra o chão.”

O que Franz Kafka nos faz pensar, por fim, é que essa metamorfose que afeta Gregor e sua família pode ser parecida com qualquer outra mudança que as famílias comuns possam vir a sofrer, de doenças a demissões.

A transformação de Gregor em um inseto monstruoso é narrada à la Kafka. Além do nojo e do medo, o autor corrói o leitor em pensamentos profundos.

No final das contas, não consegui ir ao primeiro encontro do grupo de leitura. Mas a obra de Kafka fez jus à fama. Ela lhe toma de forma impregnante.

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo de qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.

– O que aconteceu comigo? – pensou.”