Notícia de um Sequestro, de Gabriel García Márquez

noticia-de-um-sequestro-de-gabriel-garcia-marquez-2Quem conhece um pouco da história de Pablo Escobar sabe que sempre há outras histórias para serem descobertas. E foi mais ou menos assim que aconteceu quando Gabriel García Márquez começou a escrever o livro Notícia de um Sequestro.

O autor colombiano conta, nos agradecimentos que antecedem a obra, que, quando Maruja Pachón e seu marido, Alberto Villamizar, propuseram a ele, em 1993, escrever um livro sobre a experiência dela durante seu sequestro de seis meses, eles perceberam que era impossível não contar também as histórias dos outros nove sequestros que ocorreram ao mesmo tempo na Colômbia.


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O fato é que os dez sequestros que aconteceram simultaneamente eram quase que um único sequestro coletivo. Dez pessoas escolhidas a dedo. Sequestros executados por uma mesma empresa com um mesmo e único objetivo.

Isso é real. Notícia de um Sequestro não é um livro de ficção. A obra é, na verdade, um dos mais respeitados livros jornalísticos da literatura mundial. É um livro escrito a partir de depoimentos de personagens envolvidos no drama que parou a Colômbia na década de 1990.

“O resto parecia claro, e era a coisa mais parecida a um sentimento de culpa por nunca ter previsto que aquele sequestro poderia acontecer. Agora tinha a convicção absoluta de que era um ato pessoal contra ele, e sabia quem o tinha feito e por quê.”

Notícia de um Sequestro trata de vários acontecimentos que rodeiam o Cartel de Medelín, comandado por Pablo Escobar. É uma série de sequestros inter-relacionados. Uma perspectiva decorrente do tráfico de drogas.

A obra jornalística de García Márquez identifica personagens e caracteriza cenários em uma narração criada a partir de memórias feridas. E é muito bem feita a importância que o autor dá ao narrar como as notícias desses sequestros foram anunciadas e também quais foram as reações que elas deixaram no país em crise.

Publicado em 1996, a não ficção mostra uma grande história construída por várias outras histórias. Um grande acontecimento constituído por outros acontecimentos.

Quando é real, é real. A realidade pesa em Notícia de um Sequestro, um entre os muitos livros de Gabriel García Márquez.

Notícia de um Sequestro leva o leitor à Colômbia, mas não apaga as lembranças pouco cicatrizadas dos personagens não ficcionais.

“Em geral, os relatos sobre seu sequestro na imprensa escrita eram tão desinformados e aleatórios que faziam seus sequestradores se contorcerem de tanto rir.”

3 obras de J.M. Coetzee

3-obras-de-j-m-coetzeeJohn Maxwell Coetzee nasceu na Cidade do Cabo em 9 de fevereiro de 1940. Após completar dois bacharelados, um em em Língua Inglesa e outro em Matemática, trabalhou na Inglaterra como programador de computadores. Em 1968, doutorou-se em Linguística das Línguas Germânicas. Foi professor de Inglês em Nova Iorque, mas, depois de ter o direito de residência permanente nos EUA negado, voltou à África do Sul, onde ministrou na Universidade da Cidade do Cabo até 2000. Desde 2002, ensina e mora na Austrália.

O primeiro livro do escritor sul-africano, Dusklands, foi publicado em 1974. Antes de receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 2003, tornou-se o único autor a ganhar o Booker Prize por duas vezes, em 1983 e depois em 1999.

Conheça três obras de J.M. Coetzee, além de Desonra, livro já resenhado aqui no Ser de Livros (clique para ler):

Homem Lento

Paul Rayment é um fotógrafo de sessenta anos que perde uma perna em um acidente de bicicleta. A partir daí, sua vida muda. Antes solitário, Paul agora conhece Marijana, uma enfermeira croata por quem ele se apaixona. Nesse meio tempo, o homem recebe a visita de uma escritora, Elizabeth Costello, personagem de outros livros de Coetzee. Costello desafia Paul e cria-se assim uma luta a favor da humanidade. Um romance reflexivo sobre viver e envelhecer.

A Infância de Jesus

Neste livro, Coetzee apresenta o mundo dos estrangeiros que atravessam o oceano para começar uma nova vida. No enredo, Simón começar a trabalhar carregando sacos de grãos de trigo. Com suas memórias, o personagem debate filosofias ao questionar os direitos do homem. Além disso, ele vira guardião de uma criança de cinco anos. Com valores afetivos, a obra de Coetzee traz também uma desconfortável batalha linguística.

Foe

Considerado por alguns um clássico da literatura contemporânea, Foe recria a história de Robinson Crusoé. Susan Barton é a personagem que desembarca em uma ilha deserta e conhece um homem chamado Cruso. Depois de resgatada, ela decide contar sua história e vai de encontro com Daniel Foe, um famoso escritor, que topa ajudá-la a escrever sua experiência na ilha. Mas esse processo de escrita não acontece tão fluidamente.


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O Casamento, de Nelson Rodrigues

o-casamento-de-nelson-rodrigues-2Chegou a vez de Nelson Rodrigues, um dos mais polêmicos escritores brasileiros – se não o mais. Aquele que é – se não o mais também – um dos maiores dramaturgos do Brasil. Aquele que marcou a literatura nacional com suas peças imorais, vulgares e obscenas. Aquele que além do teatro, estava também nos jornais, escrevendo crônicas esportivas. Aquele que é criticado e venerado, amado e odiado. Reacionário considerado, conservador assumido, pervertido apontado.

Se nada é novidade na literatura de Nelson Rodrigues, O Casamento é uma esculhambação em forma de livro.


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Vou citar aqui alguns dos temas que Nelson Rodrigues aborda em O Casamento: homofobia, traição, racismo, prostituição, parricídio, incesto, sexo sadomasoquismo, tortura, agressão física à mulher, agressão física à criança, assassinato, suicídio, voyeurismo, extorsão, chantagem, machismo e estupro de menor com epilepsia.

Veja bem… Se tudo isso junto e agrupado é pesado em 2016, imagina no meio da ditadura militar. Pois é! O Casamento foi censurado dois meses depois de publicado. Por que será? E olha que o Nelson Rodrigues não entendeu a proibição, ficou “pálido de espanto”.

Publicado em 1966, O Casamento é o único romance que o autor pernambucano assinou com seu próprio nome, sem recorrer a pseudônimos.

Escrachando tabus e esculachando obsessões, Nelson Rodrigues fez de O Casamento um dos livros mais polêmicos da literatura brasileira.

“- De vez em quando eu tenho asco de mulher. O sujeito deve usar a mulher e dar-lhe um pontapé na bunda.

Glorinha suspira:

– Não gosto de mulher.

O rapaz dá um murro no volante:

– Você não gosta de mulher. Eu também não gosto de mulher. Ninguém gosta de mulher. (…)”

A história começa quando o ginecologista de Glorinha, o Dr. Camarinha, conta para Sabino, o pai de Glorinha, que surpreendeu seu futuro genro, Teófilo, beijando seu assistente na boca. É véspera do casamento de Glorinha e, na dúvida se revela ou não o ocorrido, Sabino vira sua vida de ponta cabeça.

Num vai e volta de pensamentos dos personagens, Nelson Rodrigues constrói a história formando as cenas mais desconfortáveis de se ler.

O Casamento escancara a organização da família, põe à mostra uma sociedade “doente”. O Casamento é uma grande crítica à moral da sociedade. Mas produzido no jeito mais avacalhador possível.

“Apertou-a, no peito, como num adeus. Como se o casamento, no dia seguinte, fosse a morte da filha. Beijou-a muitas vezes, na face, na testa, na orelha (pela primeira vez, a beijava na orelha). Passou a mão pelas suas costas. E quase, sem querer, ia acariciando as nádegas.”

Escrito na forma trágica de Nelson Rodrigues, a obra é composta de pequenas tragédias que vão se acumulam até virar uma imensa bola de neve. Explorando a tragédia grega, capturando resquícios da experiência do autor com as peças teatrais, a narrativa do romance comporta certo senso de humor, mesmo que seja um humor meio negro.

Li O Casamento concomitantemente com O Beijo no Asfalto, uma das peças de Nelson Rodrigues. O caso é: os temas escolhidos pelo escritor brasileiro para compor suas obras são recorrentes em várias delas, mas considero O Casamento uma junção de todos esses temas.

Num juízo moralista, Nelson Rodrigues não tem juízo nenhum. O Casamento poderia ser considerado, talvez, uma síntese da obra do escritor. Corajoso por criar tal história no meio da ditadura, foi alvo fácil da censura. Exatamente sem censura, de leitura absurdamente chocante, O Casamento é assim… Um absurdo. Pior: uma grande e explícita polêmica no melhor estilo rodrigueano de ser.

“Convidara todo mundo, metade do Rio de Janeiro. Um dos padrinhos era o Ministro e senhora. Casamento a rigor. Pela primeira vez, ia usar casaca. E imaginava a cara do Ministro, sobretudo do Ministro, se, de repente, em cima da hora, não houvesse mais casamento. Pagava aos cronistas sociais – pagava! – para dar notinhas. Afinal de contas, o casamento já é indissolúvel na véspera.”

A Vida Privada das Árvores, de Alejandro Zambra

a-vida-privada-das-arvores-de-alejandro-zambra-2Alejandro Zambra nasceu em Santiago, no Chile, em 1975. Ganhador de diversos prêmios chilenos, o escritor, crítico e professor de literatura é autor de livros de poesia, coletânea de ensaios, de contos e romances como Bonsai e Formas de Voltar Para Casa. A Vida Privada das Árvores é de 2007.

O livro conta a história de uma espera. Júlian, um professor de literatura, espera por sua esposa, Verónica. Com a demora, ele toma como responsabilidade a distração de Daniela, sua enteada. Além de brincar com ela, Júlian resolve contar-lhe histórias sobre árvores.


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Nesse meio-longo tempo, Júlian traz a tona lembranças diversas, desde como conheceu Verónica até as frustrações vividas pelas tentativas de escrever um livro.

A voz narrativa, que aguarda Verónica e relembra os acontecimentos da vida de Júlian, não demora para anunciar que o livro não acaba enquanto a mulher não chegar ou até ele perceber que ela não voltará mais.

“Seria preferível fechar o livro, fechar os livros, e enfrentar, sem mais, não a vida, que é muito grande, mas a frágil armadura do presente. Por ora, a história avança e Verónica não chega, é bom deixar isso claro, repetir isso mil e uma vezes: quando ela voltar, o romance acaba, o livro segue em frente até que ela volte ou até que Júlian tenha certeza de que ela não vai mais voltar.”

Entretendo Daniela e recordando o passado, Júlian começa a devanear inúmeras sugestões do destino que a esposa tomou, levantando possibilidades trágicas e imaginando como seria sua vida se Verónica não voltar.

Os pensamentos de Júlian transbordam A Vida Privada das Árvores. De forma breve, o livro caminha vagarosamente ao expor memórias e ilusões.

“Queria enfiar a memória numa mochila e carregar essa mochila até que o peso acabasse com suas costas.”

Em meio aos recortes do tempo, ao passado, a história, em certo momento, desanda quanto ao presente e se atém ao futuro. Quando isso acontece, o leitor chega a um ponto em que não sabe mais se o que está acontecendo é o que Júlian quer que aconteça, o que ele sente que vai acontecer, ou se realmente é o que aconteceu anos depois. Ou seja, sem saber se é real ou não, o leitor fica preso nas projeções do personagem. E isso não tem solução, não é avisado, respondido. Fica ali, entre o passado, o presente e algum tipo de futuro.

Na expectativa, Júlian cria teorias. Cabe ao leitor confiar ou não, crer ou não, andar nessa imaginação do personagem ou não.

Enquanto espera Verónica, Júlian cuida de Daniela. Em A Vida Privada das Árvores, o leitor depende, na verdade, do narrador, somente, assim como a própria história, o próprio livro. Na poética de Zambra e na quimera do personagem, o leitor é conduzido a um futuro já reservado.

“É que a gente sempre quer ser outra coisa, Daniela, responde ele – ia dizer Danielita ou Dani, mas disse Daniela. A gente nunca está contente com o que é. Seria estranho estar totalmente contente.”

As Águas-Vivas Não Sabem de Si, de Aline Valek

As Águas-Vivas Não Sabem de Si, de Aline Valek 2As Águas-Vivas Não Sabem de Si conta a história de Corina, mas não só dela. Também conta a história das pessoas que cercam Corina. E mais: conta a história dos seres que cercam Corina – e não só dos humanos. As Águas-Vivas Não Sabem de Si conta uma história sobre oceano, sobre solidão e, principalmente, sobre existência.

Corina é uma das cinco pessoas que formam a equipe que pesquisa a região de uma zona hidrotermal. Isoladas da superfície, dentro de uma estação a trezentos metros de profundidade, essas pessoas trabalham com o objetivo inicial de testar trajes especiais de mergulho.


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Porém, cada uma dessas pessoas esconde algo. Corina também. Essa convivência não contribui positivamente para a expedição científica.

“Sozinha, Corina gemeu. Tinha escolhido se fazer de ostra, se fechar, porque ali não dava para esperar compreensão ou paciência de ninguém. Eram estranhos que o acaso tratou de juntar em uma situação-limite, e realmente não dava para esperar que isso pudesse dar certo, se eram tão diferentes que nem mesmo pareciam fazer parte da mesma espécie – o que também explicava a evidente dificuldade de se comunicar.

Nada como uma fissura borbulhante para expor as fraquezas de uma equipe que nunca existiu.”

Liderados por um cientista obsessivo em encontrar vida inteligente no fundo do oceano, a vivência do grupo se constrói para o leitor intercalada com a experiência do lado de fora da estação. E do lado de fora, além da água, há muita vida.

Seres fantásticos, nos dois sentidos da palavra, são apresentados detalhadamente. O leitor mergulha (sem trocadilhos) na existência dos seres que habitam o oceano tanto quanto nos humanos que ali estão em busca de algo que nem eles mesmos sabem exatamente o que é.

O fato é que a história, do início ao fim, faz essa relação, às vezes implícita, entre os nativos e os intrusos. A relação é feita até com outros elementos. Tudo para acentuar, de alguma forma, a mesma reflexão: sobre a existência.

“Copos de isopor e corpos humanos, que diferença fazia, se seriam espremidos com a mesma força pelo abismo? Eram finitos, frágeis, quebradiços, e, depois que deixassem de existir, o mundo continuaria lá e nada mudaria.”

Uma grande diferença que dá destaque para a história de As Águas-Vivas Não Sabem de Si é o próprio oceano, que pode ser considerado também como uma personagem do enredo. O oceano é fundamental para a história, pois é nele e com ele que se cria a paisagem do livro. O cenário da obra é engendrado imageticamente.

“Ela explodia bem mais fundo, onde a luz do sol jamais tocou e nem por isso era só escuridão, deserto, silêncio; porque era ali que a vida, a própria vida, emitia luz.”

A escuridão e o silêncio, presentes em boa parte da história, representam a solidão que a autora tanto desenvolve no decorrer do livro, por vezes até demais. O centro do enredo arrasta a obra lentamente ao tratar da solitária vivência no fundo do oceano.

Essa lentidão da narrativa, no entanto, é cortada com um final poético. Pois, acima de tudo, a história do livro é um mergulho nas profundezas do oceano e no abismo particular do ser humano.

Acompanhado por uma mergulhadora insegura, o leitor percebe que a aventura presente em As Águas-Vivas Não Sabem de Si é muito humana. Ao mesmo tempo, participando da vida que há no fundo do mar, percebe que tudo ali pode ser tal qual acima da terra.

“[…] Vi que, no final das contas, estamos todos quebrados. Não exatamente quebrados, mas que nos falta um pedaço.”

A brasileira Aline Valek, autora do livro, é blogueira, ilustradora e colunista da Carta Capital. As Águas-Vivas Não Sabem de Si é o romance de estreia da escritora.

Chamo atenção para o projeto gráfico da edição da obra que, além de optar por boas cores, traz uma ilustração de muita qualidade. No entanto, se tem algo, a partir da minha leitura, que senti falta, é a demora do surgimento – literal – das águas-vivas, que têm, como seres vivos, apenas um capítulo onde são destaque. Talvez o mergulho pudesse ser mais a fundo também na existência das águas-vivas, mesmo consciente da relação que a história faz com os próprios seres humanos.

Apesar disso, vê-se que a história do livro é muito imagética, num bom sentido, da cabeça da autora. Há uma percepção de que algo ali tem forte relação com a realidade de quem escreve; e isso é presente.

Por fim, As Águas-Vivas Não Sabem de Si deixa a dúvida no ar (ou na água). Em relatos de distintos pontos de vista, onde existe a grande paixão pelo desconhecido, o mergulho profundo nos segredos do oceano e a forte busca por uma existência, seja ela qual for, o livro lança não só um novo trabalho, mas também uma interessante consciência sobre os outros e sobre si mesmo.

“A vida, claro, sempre arrumou uma forma de continuar. Coisa teimosa, ela. Porque, por maior que fosse a destruição, uma ou outra espécie sobrevivia, dava continuidade à história, ficava para ver o que viria depois.

Mas, naquele momento, ainda não era tempo de reconstrução. Era uma época em que o mundo ficava cada dia mais vazio, a água lentamente sufocando os que viviam nela, fazendo carcaças sem vida afundarem e se acumularem no solo em que descansariam para sempre. […] Não fazia ideia do que acontecia com o mundo ao seu redor. Apenas existia.”