Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago

Ensaio Sobre a Cegueira, de José SaramagoImagine-se ficando cego. Do nada, de repente, “num piscar de olhos”, você não vê mais nada. Ao contrário da escuridão, porém, você só enxerga um fundo branco. Tudo branco!

Agora imagine que não é só você que está com esse problema. O mundo todo está ficando cego!

É assim que Saramago conduz Ensaio Sobre a Cegueira, um dos meus livros prediletos.


Compre na Amazon: http://amzn.to/2bOi404


O acontecimento fantástico, essa cegueira que atinge toda a população, seria uma doença nova. Ou seria uma maldição? O caso é que as pessoas param de enxergar e veem o mundo todo branco. O problema é que a ciência não consegue diagnosticar. Curar, então, muito menos.

Diante dessa tragédia, Saramago narra o desespero, logo no início do livro, de forma excepcionalmente realista.

“Num movimento rápido, o que estava à vista desapareceu atrás dos punhos fechados do homem, como se ele ainda quisesse reter no interior do cérebro a última imagem recolhida, uma luz vermelha, redonda, num semáforo. Estou cego, estou cego, repetia com desespero enquanto o ajudavam a sair do carro, e as lágrimas, rompendo, tomaram mais brilhantes os olhos que ele dizia estarem mortos.”

Ensaio Sobre a Cegueira arrebenta a pedra preciosa da humanidade, aquela conquistada de forma árdua, lapidada, há anos, dura e penosamente: o Estado de direito.

As vigas das relações governamentais, institucionais, civis, sociais e familiares são simplesmente desmanteladas. Conforme o homem perde a visão, o ser humano retorna ao seu estado ancestral.

“Mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos.”

Quando se dá o início da epidemia, a primeira medida do governo é jogar as vítimas em quarentena. Onde? Dentro de um sanatório desativado.

Sem auxílio de agentes de saúde ou de funcionários do governo, com alimentação deixada no pé da porta pelo exército enroupado com vestimentas de proteção, as pessoas viram objetos. E a meta mais importante, num primeiro momento, é mantê-las longe, para que não contaminem mais ninguém.

“Os primeiros a serem transportados para o manicómio desocupado foram o médico e a mulher. Havia soldados de guarda. O portão foi aberto à justa para eles passarem, e logo fechado. Servindo de corrimão, uma corda grossa ia do portão à porta principal do edifício, Andem um pouco para o lado direito, há aí uma corda, ponham-lhe a mão e sigam em frente, sempre em frente, até aos degraus, os degraus são seis, avisou um sargento. No interior a corda abria-se em duas, um ramo para a esquerda, outro para a direita, o sargento gritara, Atenção o vosso lado é o direito.”

Claramente, como a cegueira, a medida em nada resolve. Dentro da quarentena, excesso de gente e suas consequências. Fora da quarentena, a evolução da epidemia.

Tudo se desenrola até que não sobre mais ninguém que enxergue. Exceto uma única pessoa… Uma mulher que, inexplicavelmente, continua com visão.

É ela quem vê as ruas tomadas por milhares de cegos. Cegos perdidos. Cegos que, por estarem cegos, não acham mais o caminho de casa.

É ela quem vê a angústia dos seres humanos famintos saqueando supermercados. É ela quem vê o lixo e a imundice. É ela quem vê, também, as mortes alheias, as loucuras, os perigos, a tragédia.

“O grupo, umas quinze pessoas, afastou-se. Ao longo da rua outros grupos apareciam, pessoas isoladas também, encostados às paredes havia homens a aliviar a urgência matinal da bexiga, as mulheres preferiam o resguardo dos automóveis abandonados. Amolecidos pela chuva, os excrementos, aqui e além, alastravam na calçada.”

Publicado em 1995, Ensaio Sobre a Cegueira é um dos livros mais lidos de José Saramago no Brasil. A popularidade virou filme com elenco internacional. Dirigido por Fernando Meirelles, o filme foi gravado, em várias cenas, em São Paulo.

Saramago ganhou o prêmio Nobel de Literatura somente três anos depois, em 1998. Até hoje, é o único escritor de língua portuguesa que recebeu tal premiação.

O estilo de Saramago é apaixonante. Amargo e irônico, o texto de Saramago, de narrativa original, entre regras de pontuação e questionamentos perturbadores, lhe vale a fama tardiamente alcançada, com quase 60 anos. Mas foi nessa terceira idade, também, que o escritor mais produziu.

A cegueira de Saramago é intolerante ao falar do egoísmo, é egoísta ao falar da selvageria, é selvagem ao falar da indiferença e é indiferente ao falar dos costumes da sociedade moderna.

“Depois, como se acabasse de descobrir algo que estivesse obrigado a saber desde muito antes, murmurou, triste, É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade.”

Ensaio Sobre a Cegueira mais do que samba na cara sociedade, é mais do que um soco no estômago da humanidade. Ensaio Sobre a Cegueira abre os nossos olhos de forma radical. Nos faz ver o mundo forte e intensamente e perceber que, enxergando tudo ou nada, cores, preto ou branco, pouco importa. Todos somos cegos ao ignorar propositalmente o que está ao alcance de nossa visão.

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

2 comentários sobre “Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago

Deixe um comentário