Jantar Secreto, de Raphael Montes

O escritor carioca Raphael Montes nasceu em 1990. Isto é, Raphael faz parte (ou está muito perto) da faixa etária mais atingida pela crise econômica que vem permanecendo no Brasil. O número de desempregados no país só aumenta e o sentimento de frustração também.

Dono do rápido e precoce sucesso que atingiu com os lançamentos de “O Vilarejo” e “Dias Perfeitos”, Raphael Montes simboliza, neste seu terceiro romance, muito mais do que o senso de fracasso dos jovens brasileiros de hoje.

Sorte ou talento? Raphael Montes é um dos maiores novos ficcionistas do país.


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Jantar Secreto conta a história de quatro amigos que saem de Pingo d’Água, uma cidadezinha do interior do Paraná, para tentar a vida no Rio de Janeiro.

Dante, Leitão, Hugo e Miguel, personagens totalmente diferentes e originais, cada um com suas características e aspirações, mudam para a cidade grande em 2010. Matriculam-se nas faculdades e alugam um apartamento em Copacabana.

Passam alguns anos até que o corretor liga para um deles e diz que não recebe o aluguel há meses. Um dos quatro amigos, responsável pelo pagamento, admite a falha. E o motivo é irritante. Ele simplesmente parou de pagar o aluguel para gastar o dinheiro com sua nova e peculiar namorada. Resultado: uma dívida e um grande problema em mãos.

O aperto financeiro os une para a busca de uma solução. Conversa vai, conversa vem, decidem participar de um projeto que, aparentemente, vem crescendo no Brasil. Intitulado Jantar Secreto, o projeto funciona assim: você oferece um jantar especial em seu domicílio e as pessoas pagam por isso.

Decididos na realização do jantar, já que um dos quatro amigos é cozinheiro, cadastram-se no site do projeto. Porém, o amigo responsável pela inscrição, o mesmo que gastou todo o dinheiro do aluguel, resolve fazer uma brincadeira e, no cadastro, coloca que, no jantar secreto, eles servirão: carne humana.

“Aqui no Brasil a gente come vaca, mas não come cavalo. Na França, eles comem cavalo, mas não comem cachorro. E sabia que na Índia eles comem cachorro, mas não comem vaca? Cada um na sua. A verdade é que comer carne é bom demais.”

Quando os outros amigos descobrem a peça, irritadiços, tiram a inscrição do site. No entanto, neste pouco tempo, já há muitos interessados. Muitos, mesmo. E mais: todos, inclusive, já depositaram o dinheiro na conta deles. Muito dinheiro. Mais do que a dívida que eles acumularam.

“O que fazer?” pra lá, “o que fazer?” pra cá. Os amigos, sem volta, precisam desse dinheiro. Sim! Eles resolvem seguir em frente e servir o jantar.

A Equipe Carne de Gaivota, como se intitulam, percebe que talvez tenham chegado, enfim, ao melhor jeito, o mais acessível, ou simplesmente o único em vista, de ganhar dinheiro. O problema é que a coisa toma uma direção incontrolável.

“Por trás de cada prato existe a morte. As pessoas preferem fechar os olhos pra isso, mas ela está lá. A morte.”

Jantar Secreto não fala só sobre a juventude de hoje. Jantar Secreto põe em tese o canibalismo. E não à toa.

Raphael Montes, vegetariano, jorrou em seu novo livro a grande reflexão. Afinal, qual a diferença disso que se escreve aqui da questão animal? O que é animal? O que é a carne que nós comemos? Qual o limite, se há algum limite?

Limite ético é ponto chave no livro de Raphael Montes. E não pense que ele trata disso com leveza. A temática é forte, é pesada. O livro tem lances bizarros, nojentos, grotescos. Jantar Secreto é excessivamente violento!

Tem humor negro? Tem. Mas tem coisa séria.

Tem abate, tem sofrimento, tem descrições proibidas para os mais sensíveis. Tem cenas de revirar o estômago, tem situações de embrulhar o estômago. Tem estômago! E de tanto ter estômago, só lê quem tem estômago.

“Hugo girou o toque na cabeça (ele tinha essa mania), vestiu o avental e a luva e retirou do forno a travessa fumegante usada para finalizar a carne já frita. Com uma concha, regou os cortes com uma redução de cor branca, pontuada de pedacinhos esverdeados de casca de limão e laranja. Enfeitou os pratos com cubos de maçã verde assada e zestes de limão-siciliano. Então espetou uma fatia pequena com um garfo e me estendeu. “Quer provar?””

Sem limites. O leitor de Jantar Secreto se prende à história e quer saber até onde isso tudo pode chegar. E no final se depara em um nível aterrorizante, extremo.

Sem exageros. Jantar Secreto é uma indigestão literária. Mas que vale a degustação.

“Sem pensar muito, cortei um pedaço e pus na boca. Mastiguei devagar, espremendo todo o suco da carne com a língua, enquanto as papilas captavam cada nuance de sabor. Rapidamente, um langor desconhecido dominou toda a minha boca, desde as bochechas até o palato, e meu corpo relaxou de prazer, implorando por mais. Sem dúvida, era a carne mais deliciosa que eu já havia comido na vida.”

O Vermelho e o Negro, de Stendhal

O pseudônimo Stendhal foi usado pela primeira vez em 1817, no livro Roma, Nápoles e Florença. Stendhal, na verdade, foi apenas um entre os muitos pseudônimos de Henri-Marie Beyle (1783 – 1842), o autor francês de um dos maiores clássicos europeus: O Vermelho e o Negro.

França, 1815 – 1830: período de restauração: era pós-Napoleônica. É nesse contexto que acontece a história de O Vermelho e o Negro, publicado em 1830. Tempos turbulentos numa França aflita e fervescente formada pelo mais alto nível de vida social e política.


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Julien Sorel é o protagonista de O Vermelho e o Negro. Filho de um pequeno burguês de uma província francesa, Sorel é altamente influenciado por Napoleão Bonaparte, seu ídolo mor. O problema é: o país vive numa era pós-Napoleônica e idolatrar Napoleão não é a melhor maneira de se conseguir boas coisas.

“Em meio a uma cidade de vinte mil habitantes, esses homens determinam a opinião pública, e a opinião pública é terrível num país que tem sua Constituição.”

Sorel quer fortuna. Este é a base do enredo da obra de Stendhal. Um dos personagens mais ambiciosos da literatura européia, Sorel almeja constantemente alcançar uma posição social elevada. Ele não se contenta em ser apenas o filho de um pequeno trabalhador. Sorel quer subir, subir e subir.

Hipocrisia. O protagonista de O Vermelho e o Negro precisa ser hipócrita para esconder sua idolatria por Napoleão Bonaparte. Omitir seus pensamentos mais liberais: só assim ele talvez possa conseguir alcançar altas posições sociais.

“- Quereis as honrarias do mundo – disse ele -, todas as vantagens sociais, o prazer de comandar, de zombar das leis e de ser impunemente insolente para com todos? Ou quereis a salvação eterna? Os menos adiantados dentro vós só precisam abrir os olhos para distinguir os dois caminhos.”

Vivendo entre contrastes, da inteligência à ingenuidade, Sorel vai da província até a cidade costurando os costumes franceses da época em meio a conflitos políticos e sociais.

É na alta sociedade francesa que Sorel quer estar. E é na carreira religiosa que ele enxerga o caminho para essa ascensão social, mesmo sem vocação alguma para o seminário.

Sorel deixa de lado a visão militar, o vermelho do sangue, e veste-se por completo, literalmente, de negro.

“De repente Julien parou de falar em Napoleão; anunciou o plano de se tornar padre, e passaram a vê-lo constantemente, na serraria do pai, empenhado em decorar uma Bíblia latina emprestada pelo cura. O bom velho, maravilhado com seus progressos, passava noites inteiras ensinando-lhe teologia. Julien exibia apenas sentimentos piedosos. Quem teria adivinhado que aquele rosto de mocinha, tão pálido e tão doce, escondia a resolução inquebrantável de se expor a mil mortes, contanto que fizesse fortuna!”

Estrategista? Calculista? Egoísta? Sorel é cândida ambição.

Dividido em duas partes, O Vermelho e o Negro conta a trajetória desse personagem que vai da justiça à injustiça sempre em busca da ascensão social. Um personagem psicológico que luta contra o que lhe convém e enfrenta a sociedade francesa com as armas que lhe cabem.

“Afinal, a arte de seduzir é o seu ofício; não pensa em nada além disso há mais de quinze anos, já que está com trinta. Não se pode dizer que lhe falta espírito, ele é astuto e perspicaz; o entusiasmo, a poesia são um impossibilidade em seu caráter; é um procurador; mais uma razão para que não se engane.”

O envolvimento de Sorel com duas mulheres, que acontece no decorrer da história, é elemento exemplificativo para a dúvida que Stendhal deixa ao leitor. Na vida desse protagonista, o que é sentimento verdadeiro e o que é camuflagem de interesses?

Fome, sede, cobiça. A ganância de Julien Sorel o faz crescer e subir. Mas assim como seu ídolo Napoleão, o soldado que veio de baixo e transformou-se no homem mais poderoso da Europa, Sorel pode estar a um passo de despencar.

“Se tiver a intenção de cortejar os poderosos, a perdição eterna está garantida. Poderá fazer fortuna, mas será necessário prejudicar os miseráveis, bajular o subgovernador, o prefeito, os homens importantes, e servir suas paixões: essa conduta, que em sociedade se chama “saber viver”, para um leigo pode não ser absolutamente incompatível com a salvação; na nossa condição, entretanto, é preciso optar; trata-se de fazer fortuna neste mundo ou no outro, não há meio-termo.”

Se tudo o que sobe, desce, O Vermelho e o Negro, com final surpreso, é obra reflexiva não só sobre a história da França recém-pós-Napoleônica, mas sobre a ambição do ser humano que vive de aspiração social.

“- Senhores jurados, o horror do desprezo, que acreditava poder enfrentar no momento da morte, me faz tomar a palavra. Senhores, não tenho a honra de pertencer à sua classe, veem em mim um camponês que se revoltou contra a baixeza de sua sorte. Não lhes peço nenhuma graça – continuou Julien, firmando a voz. – Não tenho ilusões, a morte me espera: ela será justa. (…) Mas, ainda que fosse menos culpado, vejo homens que, sem se deterem em tudo o que minha juventude pode merecer piedade, vão querer punir em mim e desencorajar para sempre essa classe de jovens que, nascidos numa classe inferior e de alguma forma oprimidos pela pobreza, têm a sorte de conseguir uma boa educação e a audácia de misturar-se ao que o orgulho dos ricos chama de boa sociedade. Este é o meu crime, senhores, e, na verdade, será punido ainda mais severamente por não ser julgado por meus pares. Não vejo nos bancos dos jurados nenhum camponês enriquecido, mas apenas burgueses indignados…”

O Bicho-da-Seda, de Robert Galbraith

Robert Galbraith é, como sabemos, a nossa querida J.K. Rowling. (Se você não sabia, sabe agora: Galbraith é o pseudônimo da autora criadora do universo mágico mais famoso da literatura contemporânea > Harry Potter).

J.K., ou Robert Galbraith (tratemos assim), publicou, em 2013, O Chamado do Cuco, livro de suspense no melhor estilo “histórias de detetive”. Já resenhado pelo Ser de Livros (clique >aqui< para ler ou reler), O Chamado do Cuco lançou um caso fictício oportuno de investigações e, com ele, a figura do detetive Cormoran Strike. Mas nada ficou por ali. Depois de resolver o caso Lula Landry, o novo detetive do mundo literário volta com O Bicho-da-Seda.


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Lançado no Reino Unido em 2014, O Bicho-da-Seda é o segundo livro da série Cormoran Strike, escrito por Robert Galbraith.

Nesta segunda história do detetive britânico, Robin Ellacott continua como sua assistente, agora com mais empenho nas investigações.

Cormoran Strike, em O Bicho-da-Seda, retorna com o desaparecimento de Owen Quine, um escritor rebelde. Quem procura Strike é Leonora Quine, mulher do escritor. Onde tudo começa como um simples desaparecimento, o caso cresce intensamente quando Quine é encontrado morto, assassinado bizarramente.

Descobrir esse assassino, digamos, “peculiar”, é a nova aventura de Cormoran Strike.

“Os intestinos desapareceram, como que devorados. Tecido e carne foram queimados por todo o cadáver, aumentando a impressão abominável de que foi cozido e dele se regalaram.”

O leitor de O Bicho-da-Seda mergulha novamente na investigação de Cormoran Strike. Pistas vão surgindo, suspeitas vão aparecendo e sendo descartadas. Assim como o detetive, o leitor de O Bicho-da-Seda paralisa na dificuldade da solução. O “quem matou?” pode ser surpreendente. Mas até o veredicto, haja neurônios para queimar.

“Para sua própria diversão, ele fingiu uma hesitação repentina, como se fosse tomado pela dúvida quanto à direção correta. Apanhada de guarda baixa, a figura escura estacou, petrificada. Strike voltou a andar e depois de alguns segundos ouviu seus passos fazendo eco na calçada molhada atrás dele. Ela era tola demais até para perceber que tinha sido descoberta.”

Como o novo caso de Strike envolve um escritor, O Bicho-da-Seda traz muitas abordagens literárias, chamando a atenção também dos apaixonados pela literatura e pelo mercado editorial.

Em O Bicho-da-Seda, o leitor também conhece mais intensamente Strike e Robin. Assim como a amizade dos dois se intensifica, a imersão em suas vidas pessoais também aumenta.

Ler O Chamado do Cuco antes não é pré-requisito absolutamente necessário. No entanto, eu sugiro fortemente a leitura do anterior. Porque, por mais que o detetive trate de casos distintos, O Chamado do Cuco é uma grande introdução à série.

Galbraith mais uma vez mostra inteligência no gênero policial. Neste segundo livro, a narrativa é mais apurada, o enredo é mais explorado. Cormoran Strike retorna com tudo e o novo caso de Robert Galbraith vale tanto quanto o primeiro.

“Owen Quine pensava que as mulheres não tinham lugar na literatura: ele, Strike, também tinha um preconceito secreto – mas que alternativa tinha agora, com o joelho gritando por misericórdia e nenhum carro com direção automática para alugar?”

O que é um romance de cavalaria?

Aproveitando a leitura e a resenha de Dom Quixote, uma das obras literárias mais importantes de todos os tempos, falemos sobre os frequentemente citados (e raramente lidos, nos dias de hoje) romances de cavalaria.

Os romances de cavalaria, ou as novelas de cavalaria, constituíram um gênero literário durante o período da Idade Média. Tipicamente medieval, esse gênero literário teve seu auge entre o fim do século XV e o começo do século XVII. Por isso não é comum nos depararmos com lançamentos de novos livros com histórias de cavalaria.

Essas obras foram escritas desde o século X, surgindo provavelmente na França ou na Inglaterra. (Não se sabe ao certo.) Mas além desses dois países, as novelas de cavalaria fizeram muito sucesso também em Portugal, na Itália e na Espanha (país de origem de Miguel de Cervantes, autor de Dom Quixote).

A partir do momento que foram tornando-se populares, os romances de cavalaria, que, em um primeiro momento, circulavam entre a realeza e os fidalgos, constituíram um gênero literário escrito em prosa medieval que aconteceu durante os movimentos literários do Trovadorismo e do Humanismo.

As novelas de cavalaria, na verdade, são derivadas da poesia épica. Os poemas épicos que surgiam eram longos demais e, por isso, foram sendo escritos em prosa, construindo assim a essência das narrativas de cavalaria.

Os romances de cavalaria retratam histórias de temas heroicos e guerreiros. Os enredos contam os feitos e as aventuras (às vezes fantásticas) de heróis destemidos, cavaleiros errantes em busca da justiça e da glória.

Essas aventuras, porém, sempre são mescladas com histórias de amor. Os cavaleiros medievais nunca se contentam somente com as batalhas e as missões. Eles têm suas amadas, as contemplam e muitas vezes exigem ser correspondidos. O amor concretizado, às vezes proibido, nem sempre tem final feliz, mas os heróis das novelas de cavalaria nunca deixam de lado o amor por suas donzelas. Além disso, algumas histórias de cavalaria também refletem ideais cristãos em aventuras espirituais.

Entre atos de coragem e lealdade, na dúvida de um final possivelmente trágico, os romances de cavalaria, normalmente bem extensos e divididos em capítulos, foram se adaptando às novas perspectivas de mundo. Ultrapassando a temática e também a linguagem, foram deteriorando-se na tradição. Ficaram perdidos no tempo.

Algumas das novelas de cavalaria que marcaram o gênero foram Amadis de Gaula, A Demanda do Santo Graal, O Palmerim de Oliva e até Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda.

Dom Quixote não é um romance de cavalaria! A obra de Cervantes é inspirada nas novelas de cavalaria. Dom Quixote de La Mancha é, na verdade, uma sátira a esse gênero literário medieval. Com todos os atributos e características típicos de um romance de cavalaria (todos, mesmo), o livro Dom Quixote é considerado o primeiro “romance moderno”. Um grande divisor de águas refletidas pela história das novelas de cavalaria.

Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

A grande obra de Miguel de Cervantes (1547 – 1616). A maior criação da literatura espanhola de ficção. Dom Quixote é considerada por muitos a melhor obra literária de todos os tempos. Um dos primeiros livros das línguas européias modernas, Dom Quixote tem, sim, grande peso na história da literatura mundial.

Dom Quixote foi publicado em duas partes. A primeira em 1605. A segunda em 1615. Em sintonia, os dois volumes de Dom Quixote formam um dos expoentes da literatura de todo o mundo. O maior da Espanha.


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“E assim vou por essas solidões e descampados em busca de aventuras, com ânimo deliberado de oferecer meu braço e minha pessoa à mais perigosa que a sorte me depare, na defesa dos fracos e desvalidos.”

Dom Quixote conta a história de um homem de idade fissurado por suas leituras de romances de cavalaria. De tanto ler, o personagem protagonista do enredo decide tornar-se um cavaleiro andante. Ele inventa e passa a acreditar devotadamente que é, a qualquer custo, um verdadeiro cavaleiro. Outra forma de dizer: ele ficou maluco!

“Sua imaginação se encheu de tudo aquilo que lia nos livros, tanto de encantamentos como de duelos, batalhas, desafios, feridas, galanteios, amores, tempestades e disparates impossíveis; e se assentou de tal modo em sua mente que todo aquele amontoado de invenções fantasiosas parecia verdadeiro: para ele não havia outra história mais certa no mundo.”

O personagem, então, define seu nome de cavaleiro (Dom Quixote de la Mancha), improvisa uma armadura, pega seu cavalo, o Rocinante, e começa sua vida de cavaleiro andante, disposto a enfrentar batalhas e ajudar o próximo.

Dom Quixote faz da sua própria vida um romance de cavalaria.

“Assim, sem avisar pessoa alguma de sua intenção e sem que ninguém o visse, bem cedinho, antes que nascesse um dos dias mais quentes do mês de julho, vestiu a armadura e montou em Rocinante; posto o mal composto elmo, enfiou o braço na adarga, empunhou a lança e saiu para o campo pela porta dos fundos do quintal, com enorme contentamento e alvoroço por ver com que facilidade havia começado seu bom desejo.”

Sem juízo e sem razão, o fidalgo que decide imitar os heróis dos romances de cavalaria que tanto leu, escolhe sua amada, Dulcineia del Toboso, e não demora a arranjar um escudeiro fiel, Sancho Pança.

Dom Quixote e Sancho Pança tornam-se bons amigos e companheiros de aventuras (ou desventuras). E por mais que Sancho Pança, por vezes, alimente a loucura de Dom Quixote, ele tem certo bom senso. A visão do fiel escudeiro é bem mais realista do que os devaneios fantásticos de Dom Quixote de la Mancha.

“- Quem é este homem, senhor, com esse jeito todo e esse modo de falar?

– Ora, quem poderia ser além do famoso dom Quixote de la Mancha – respondeu o barbeiro -,  reparador de agravos, o consertador de ofensas, o protetor das donzelas, o terror dos gigantes e o vencedor das batalhas?

– Isso – respondeu o pastor – me parece aquelas coisas que se lê nos livros de cavaleiros andantes, que faziam tudo isso que vossa mercê diz desse homem, mas em minha opinião vossa mercê está brincando ou este gentil-homem tem vazios os aposentos da cabeça.”

Como ler Dom Quixote? Exatamente para como foi escrito. Dom Quixote é uma obra cômica. Sim! Dom Quixote foi feito para ser interpretado como um livro engraçado, satírico. É uma novela realista de efeito humorístico.

Dom Quixote é, na verdade, uma paródia de um romance de cavalaria, gênero que, na época, fazia grande sucesso, mas que já perdia sua popularidade.

No duelo entre a imaginação e a realidade, Dom Quixote satiriza as histórias fantásticas dos heróis literários da cavalaria.

“- Senhor, as tristezas não foram feitas para os animais e sim para os homens, mas, se os homens se entregam muito a elas, tornam-se animais. (…) Que diabos se passa? Que abatimento é esse? Estamos aqui ou no mundo da lua? Que Satanás carregue todas as Dulcineias da face da terra, pois mais vale a saúde de um só cavaleiro andante que todos os encantamentos e transformações da terra.”

Irônico, às vezes trágico, às vezes sério, Cervantes concebeu Dom Quixote em um equilíbrio de sensações. Dentre tantas aventuras e desventuras, passeando, por vezes, em histórias cansativas (por isso também deve-se ler Dom Quixote com uma interpretação cômica), o autor espanhol fez jus ao mérito não só pelo sucesso. Colocar tanta sabedoria em um personagem que ficou maluco não é coisa fácil de fazer na literatura.

“Dizendo isso e se encomendando de todo coração a sua senhora Dulcineia, pedindo-lhe que o socorresse em tamanho aperto, bem protegido pela rodela, com a lança em riste, arremeteu a toda brida com Rocinante e investiu no primeiro moinho que encontrou pela frente.”

Dom Quixote, então, acompanha as aventuras desse cavaleiro errante, desse velho maluco e sonhador. Porque, sim. A figura de Dom Quixote é a representação da coragem de sonhar e tentar realizar os sonhos.

Miguel de Cervantes foi, afinal, muito grande ao colocar em um único personagem a figura tão verídica e tão comum no mundo real dos sonhadores que se camuflam na realidade.

Dom Quixote é, sobretudo, um incentivo a esses personagens da vida real. Sonhar, acreditar e tentar realizar. Não se esconder, criar coragem e lutar. Cavalgar sempre à frente. Salve os Dons Quixotes da vida real!

“E o que tiro a limpo de tudo isso é que essas aventuras que andamos buscando vão nos trazer tantas desventuras que no fim das contas não saberemos nem qual é nosso pé direito.”